domingo, 7 de abril de 2019

« À estupefaciente esterilidade daquela mulher absurda, que o amava como um amor oscilante, hoje rarefeito até à indiferença, amanhã exasperado até à crise, tornara-se-lhe já necessária. Entrara-lhe no sangue, como escrevem os psicólogos sem pretensões, que afinal são os mais exactos; entrara-lhe no sangue como um vírus incurável.»

Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.17
«A primeira vez que falara à actriz, pedindo-lhe aquela meia hora de colóquio, que se converteu numa noite de sensualidade e no início de um grande amor, fora movido por curiosidade cerebral, e não por desejo dos sentidos. E à actriz ele agradara pela falta de rebuscamento que ela via nas suas palavras e nos gestos de homem ordinário.
Mas o homem ordinário transformara-se nas mãos desta mulher experimentada, que lhe estimulara aptidões sopitadas, despertada talentos adormecidos, valorizara possibilidades até então latentes na sua vida incolor, entre a gentalha inútil. Ela revelara-o a si mesmo, refinando-lhe os gostos, aguçando-lhe a cerebralidade, multiplicando-lhe as exigências, escancarando-lhe os olhos sobre um mais vasto ângulo do horizonte, fazendo-lhe vibrar todo o registo fisiológico com uma inesperada variedade de sofrimentos e prazeres.»


Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.16

Só há um meio de se defender da opinião pública: suportá-la.

« - Não te preocupes com a opinião pública - advertia-lhe ela. - Se te virem com uma mulher elegante, serás rufião; se for com a tua mulher, corno; com um amigo, pederasta; se andares só, onanista. Só há um meio de se defender da opinião pública: suportá-la.»

Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.14

''mulheres catastróficas''

Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.14
                                                       Filme: Os Verdes Anos

« - O grand-guignol. Que temperamento têm aqueles dois!
- Não creia! - emendou o químico patrício, grande frequentador de palcos. - Eu conheço-os. Tomados cada um de per si, têm um carácter brando; mas, postos em contacto um com o outro, explodem: são como a essência de terebintina, substância inócua, e a tintura de iodo, substância inerte; mas, se se misturam as duas, produzem dano.»


Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.12

«Quem sabe dominar os nervos é quem não os tem.»

Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.11
« - Em suma, agrada-te.
- Tem uma bela boca. Parece um timbre de laca.
- Sobre a rolha de um tubo de bacilos. Tens um fraco por cadáveres em disponibilidade, por aspirantes ao sanatório. Para que uma mulher te agrade, é preciso que tenha as clavículas descarnadas.
- A beleza clássica não me satisfaz. Defeito grave da arte clássica é a saúde. Se as inúmeras Junos tivessem sofrido de febre gástrica e as Madonas de nefrites, certas estátuas e certas telas seriam suportáveis ainda hoje.»

Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.10
« - É bem desenxabida a tua virgem!
- Minha? Uma virgem? Não tenho temperamento para iniciador.»


Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.10

«Eu, mulher invejada, sinto-me a menos invejável de todas as mulheres.»

Pitigrilli. A virgem de 18 quilates. Tradução de João Santana. 1ª Edição: Agosto de 1973, Editorial Minerva., p.9
''O Preço de uma pessoa vê-se na
maneira como gosta de usar as palavras.
Lê-se nos olhos das pessoas. As
palavras dançam nos olhos das pessoas
conforme o palco dos olhos de cada
                                                   um.´´

José de Almada Negreiros

''Uma Abelha na Chuva'' . Laura Soveral no espelho de Fernando Lopes


(...)

Em tudo a pele de estanho inacessível
da insofrida zíngara vadia
ascende solitária e descomposta
à lésbica nudez da literatura.

Carlos Garcia de CastroRato do Campo. Edições Colibri, Lisboa, 1988 . p. 23


'' Os olhos traz cansados de esmagar os lírios.''


Carlos Garcia de CastroRato do Campo. Edições Colibri, Lisboa, 1988 . p. 22

''Deixei-me de prever civilizações,''


Carlos Garcia de CastroRato do Campo. Edições Colibri, Lisboa, 1988 . p. 21

Manifesto

Mágicas, ainda existem
as grandes Tabacarias,
como atractivo mesteiral das artes.

- Mas são diferentes os ócios.

Não produzimos frenesins pacíficos.

Freud ensinou-nos a ciência dúplice
de preservar, vigilantes,
as almas adolescentes
permanentes
e a carne complicada de incapazes.

Estes poetas não precisam já
dos dramas do onanismo,
não se amedrontam dos seus próprios quartos.
Estes poetas não precisam já
de violoncelos.
- Nem de procissões!
nem santos, teologias,
fingimentos, Renascenças,
senhoras-mães-dependências
profissionais e mentais
da esplendorosa preguiça
que a rastos se faz enorme
presunção da burguesia
liberal, nacionalista,
de absinto, com sopeiras.

Esoterismo, o plâncton
das mansas esquizofrenias
que a natureza desculpa
com pontes de tédio alado.
A salvação, maravilha
das anarquias domésticas,
crucianas, pelos Cafés,
com verbos e metafísica.

Estes poetas já não são suicidas.

Já não se diz nem faz só por dizer-se.

A nova história será sempre a mesma,
não se provoca só por bem falar.

- Lá muito adiante a eternidade é escusa.

(E estes poetas já serão poetas?)


.... ....  ... ... ... .... .... .... .... ... .... .... .... ... .... ...

Sair de casa de manhã, tratado,
já predisposto mais um dia solto,
- quanto me custa por haver emprego!

                                                         Fevereiro, 1988


Carlos Garcia de Castro. Rato do Campo. Edições Colibri, Lisboa, 1988 . p. 11/12

sábado, 6 de abril de 2019

'' a balbúrdia dos dias''

''O que é preciso é saber o mais cedo possível com quem vamos envelhecer''

Peter Stein

"Os nossos mortos estão apenas ausentes e hão-de voltar."
"A eternidade num escritor é morrer e ficar como os outros, com a boca cheia de terra"

João de Melo

''O actor é sempre uma ferida que dói.''

Jorge Silva Melo. Ainda Não Acabámos, como se fosse uma carta
''o socialismo são os sovietes mais a electricidade''.

Lenine
''Ter pátria é ter culpa. É culpa do abandono, das ruas sujas, dos projectos abandonados, da miséria. Culpa do triunfo desta contra-revolução.''

Jorge Silva Melo. Ainda Não Acabámos, Como se Fosse uma Carta

´´Puseram-nos na rua como se fossemos gatunos''

Jorge Silva Melo. Ainda Não Acabámos, Como Se Fosse Uma Carta

Worker feeding machine. Still from Charlie Chaplin’s Modern Times s (1936)


''É impossível entrar no mesmo rio duas vezes. As águas já são outras e nós já não somos os mesmos.''

''Captar a vacilação do mundo''

deambular ao vento, pensar como se não tivesse fim

agrafar a ternura

´´ilha de vento ´´

''Se o presente fosse sempre e não transcorresse para o
passado, não seria mais tempo, mas eternidade.''

Agostinho

quarta-feira, 3 de abril de 2019

terça-feira, 2 de abril de 2019


«aranhas-lobos»

borboleta folha-morta

insectários

insectos sociais

formigas-brancas

«voo nupcial das rainhas»

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 23

''Polistos ou vespas negras, no seu ninho de «papel»''

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 23

''a dança das abelhas''

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 21

insectos cegos

Maple Tree and Small Birds c1765, by Ito Jakuchu


«(..) as abelhas não vêem o vermelho, cor de tantas flores; vêem o ultravioleta, invisível para o homem.»

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 18

''Grupo de lepismas, traças ou «peixinhos-de-prata», insectos primitivos''

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 14
«Devido à sua estrutura tão simples, os insectos pouco devem sofrer com qualquer ferimento. Uma borboleta decapitada continua a pôr ovos e um cleóptero continua a comer enquanto outro insecto se entretém a devorá-lo.»

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 11

Peças bucais sugadoras

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 11
''Árvore devastada por lagartas''

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 9

flor de morangueiro

''transporte do pólen e a fecundação das flores''

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 8

«(...) certas espécies de formigas capturam outras para delas fazerem escravos. Quando uma abelha é escolhida para rainha, destrói imediatamente as células das suas irmãs reais e mata-as.»

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 7

Mortandade

''Os insectos comem tudo, desde sangue a madeira.''

O Mundo dos insectos. Editorial Verbo, Lisboa, 1969 p. 7

e.xi.gui.da.de

Lepidópteros: esfinge, borboleta nocturna


mesteiral

mes.tei.ral
məʃtɐjˈraɫ
nome masculino
antiquado homem que tem um mester ou profissão manualartífice

''valores comunicáveis''

mentira política moderna

                    mentira eleitoral

mendax ab initio

Mentiroso desde o início.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

«...o teatro é um país em si mesmo, um grande território onde cabe o mundo inteiro...». 

Dramaturgo e encenador Carlos Celdrán

sábado, 30 de março de 2019

Flávio Rodrigues

CANÇÕES


Pedir
amparo a alguém é uma loucura.
Pedir amor,
Também nada resolve – e para quê?

O amor corre – e em seus próprios movimentos
Isola-se, e de tudo parece que descrê;
E quando vem dizer-nos que é verdade,
Vê-se a mentira
Em que ele a rir afirma o que não vê.

António Botto

BEIJEMO-NOS, APENAS

Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda
Para um momento melhor
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde;
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro...

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva
Dosa teus cabelos - És lindo!

A morte,
devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos apenas,
Que mais precisamos nós?

António Botto

SE DUVIDAS QUE TEU CORPO


Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.

Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha –
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.

António Botto

O Beija-flor bico de espada

                                                                          Beija-flor-de-garganta-rubi

néctar pegajoso


“uma guerra sem guerra, a sós”

“Bem-vindos à guerra niilista.”

Flávio Rodrigues

depender das flores

''os beija-flores''

homo demens,

«a loucura que não é um excesso excepcional, mas que está potencialmente presente em cada um de nós.»

Moda sem género

domingo, 17 de março de 2019

''Precisamos tanto de beleza às portas da morte.''

Natália Correia – Durante o debate da lei contra o alcoolismo





 
Durante o debate da lei contra o alcoolismo
Num país de beberrões
Em que reina o velho Baco
Se nos tiram os canjirões
Ficamos feitos num caco.
E querem os deputados
Com um ar de beatério
Que fiquemos desmamados
Quais anjos num baptistério.
Se o verde e o tinto são
As cores da nossa bandeira,
Ai, lá se vai a nação
Se acabar a bebedeira.
De abstemia não se faça
A lex neste plenário
Que o direito à vinhaça
Esse é consuetudinário.

Natália Correia

Natália Correia - poemas


Auto-retrato
Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.


BREVE ANTOLOGIA POÉTICA DE NATÁLIA CORREIA

A defesa do poeta
Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
dou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs em ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

A exaltação da pele
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§


Como dizer o silêncio?
Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.

O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.

Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?

Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.

Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.

E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.

Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

Com a essência das flores mais coniventes...
Com a essência das flores mais coniventes
Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Os anos murcham e só no corpo sentes
Quente e fagueira a passagem da vida.

Não digas, cética, que a carne é vã e passa
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Perséfone raptou rendido à graça.
Talvez no além precises do teu corpo.

Estima-o; e à beleza mais demora
Darão os fados na vida passageira.
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
De Paros seja o mármore da banheira.

Nua e rosada imerge na carícia
Emoliente da água perfumada,
E as folhas lassas dos membros espreguiça
Como uma humanizada flor aquática.

Não te esqueças porém de no amavio
Da água verter um brando óleo de malvas
Que te aveluda as coxas e mais brilho
Te dá ao polimento das espáduas.

E saindo do banho como a deusa
Sai, das macias ondas, nacarada,
Ergue-te para o amor, estátua de seda
Toda coberta com pérolas de água.

Por fim veste a camisa mais picante;
Com pó de ouro empoa o teu cabelo.
E vai para a alcova onde o teu amante
Te espera radioso e fiel como um espelho.
- Natália Correia, em "O armistício". 1985.

§

Cosmocópula    
I
        
Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras
      
II

O corpo é praia
a boca é a
nascente
e é na vulva que
a areia é mais sedenta
poro a poro vou
sendo o curso de 
água
da tua língua 
demasiada e 
lenta
dentes e unhas 
rebentam como 
pinhas
de carnívoras plantas 
te é meu ventre
abro-te as coxas e 
deixo-te crescer
duro e cheiroso como o 
aloendro
- Natália Correia, em "Eros de passagem - Poesia erótica contemporânea". [selecção e prefácio de Eugénio de Andrade]. Porto: Editora Campo das Letras, 1997.

§

De alma aberta
Tomai-me as ancas fartas dão para égua
e as açucenas que ainda são mamudas.
Dos olhos tomai pranto, é boa rega,
já que a chorar por vós vos dei fartura.

Dos ouvidos, silvos que os ocuparam
tomai que até farelo pus em música.
Calo a farinha. Anjos a trituraram.
De agro celeste, o grão não mói a Musa.

De árduos sentidos que chamais pecados
tomai só os mortais. Dão uma récua.
Dos imortais nem um que são velados
por vapores de alvorada paraclética.

Tomai riso também se quereis folia:
mete rabeca e balho o Sprito Santo.
Nos fúlgidos milagres da pombinha
embuça-se o divino no profano.

Tomai polme a ferver de ilhoa irada,
mesmo o coice que dá depois de morta.
Eu deito fogo para não ser queimada.
Mas serva e cerva sou por trás da porta.

Tomai gestos que são dos sete palmos
e para vermes eu não ponho a rubrica.
De publicar-me em pó estais perdoados.
Devo-me eterna vendida em hasta pública.

Traficantes de peles, à puridade
vos digo: só mentira arrecadais.
Porque tal como o lótus, a verdade
vos dou na comunhão que não tomais.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§

De perfil
Poesia com dor já comprei
ou algo que de poesia
tinha a cordial dissipação
dos poemas que eu não escrevia.

Agora pela romântica
retórica de não ter dinheiro
a vendo avulso mas roubo
no peso como o merceeiro.

Esse pequeno furto é o meu quarto
(de alva) indicador insone
que disca o número de deus
num sub-reptício telefone

deus movediço que é uma rede
de linhas interrompidas
onde caio morta de sede
de jogar comigo às escondidas.

Escondendo o que de frente vejo
de perfil me vedes como os egípcios
não por vício de esconder um deus
mas o deus de esconder um vício.

Se um grama de mim sonego
a que chamo deus por ínvio rito
perdoai-me porque só vos roubo
aquilo em que não acredito.
- Natália Correia, em "A mosca iluminada". 1972.

§

Do sentimento trágico da vida
Não há revolta no homem 
que se revolta calçado. 
O que nele se revolta 
é apenas um bocado 
que dentro fica agarrado 
à tábua da teoria.
Aquilo que nele mente 
e parte em filosofia 
é porventura a semente 
do fruto que nele nasce 
e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido 
sem descobrir o sentido 
do que nos há-de matar.
Rebeldia é o que põe 
na nossa mão um punhal 
para vibrar naquela morte 
que nos mata devagar.
E só depois de informado 
só depois de esclarecido 
rebelde nu e deitado 
ironia de saber 
o que só então se sabe 
e não se pode contar.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

Falavam-me de amor
Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas, 
menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.
- Natália Correia, em "O dilúvio e a pomba". 1979.

§

Ode à paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza, 
Pelas aves que voam no olhar de uma criança, 
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza, 
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, 
Pela branda melodia do rumor dos regatos, 

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, 
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos, 
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria, 
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, 
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, 
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, 
Pelos aromas maduros de suaves outonos, 
Pela futura manhã dos grandes transparentes, 
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra, 
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas 
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra, 
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna, 
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz. 
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, 
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, 
Abre as portas da História, 
                               deixa passar a Vida!
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia". Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.

§


Natália Correia - foto: (...)
I - O livro dos amantes
Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à  exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

II - O livro dos amantes
Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

VI - O livro dos amantes
Aumentámos a vida com palavras 
água a correr num fundo tão vazio. 
As vidas são histórias aumentadas. 
Há que ser rio. 

Passámos tanta vez naquela estrada 
talvez a curva onde se ilude o mundo. 
O amor é ser-se dono e não ter nada. 
Mas pede tudo
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

§

VII - O livro dos amantes
Tu pedes-me a noção de ser concreta 
num sorriso num gesto no que abstrai 
a minha exactidão em estar repleta 
do que mais fica quando de mim vai. 

Tu pedes-me uma parcela de certeza 
um desmentido do meu ser virtual 
livre no resultado de pureza 
da soma do meu bem e do meu mal. 

Deixa-me assim ficar. E tu comigo 
sem tempo na viagem de entender 
o que persigo quando te persigo. 

Deixa-me assim ficar no que consente 
a minha alma no gosto de reter-te 
essencial. Onde quer que te invente. 
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.

O Homem que Escrevia Azulejos

 Álvaro Laborinho Lúcio

''Amo o repouso no coração do lume''


“Sou da ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o espírito. O indizível”.

Natália Correia
“As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação”. Assim lembra Fernando Dacosta Natália Correia, em O Botequim da Liberdade.

Sobre Natália Correia.
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