terça-feira, 10 de junho de 2014

sombrias gaivotas

«ó pura dissonância, amor humano,
morte de amantes transformados em beijos
o tempo só de dois corpos unidos
que então conhecem tudo ou pelo menos
conhecem a ilusão de conhecerem.
se é isto o que há a fazer e um breve frémito
perpassa as flores do bosque, das veredas
recomeçadas, se era só isto o tempo
cruzando a origem, a pura dissonância,
um eco triste ao fim do sono escuro,
é cansaço ou ventura ou desespero
esse silêncio íntimo que invade
os que jogam o jogo, o próprio jogo,
os corpos nus e a sua circunstância?

de conhecermos tudo: a tensa sombra
da juventude e os lugares da cinza,
amargurado amor, de termos visto
o amador a transformar-se em sombra
a coisa amada a transformar-se em cinza,
tétanos, podridões, desastres, tudo
o que foi vão e vil, a urina e esta
pobre matéria de alegria póstuma,
os lugares da loucura e da miséria,
os retratos torcidos, tudo visto
contado e dividido, já previsto
por infames motivos.
             e de querermos
por conhecermos tudo, dizer tudo.»


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 67

 «ah, mas estamos vivos! arriscamos
tudo o que somos, tudo o que podemos
nesta vã tarantela.
               os amantes também
apostam corpo e alma já sabendo
que perdem de antemão.
                 magro lucro
o momento do jogo e só ele
a ciência possível.
                 o jogo e a dança.
tudo o mais é tão pouco e desfigura
a substância dúplice que somos:
vivermos de arriscar e de perder.
também a morte espera paciente
e já cresceu connosco e perde tempo
mas só enquanto nós esbracejamos.»


 Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 65
«(...)

mas foi há tanto tempo.
              tudo mudou depois,
a começar por nós, que queríamos, depois
de tanto tempo, tantos sobressaltos,
saber ainda como podia a noite
cumular-nos.»


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 64

o sempre aflito envelhecer das rosas


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 51

segunda-feira, 9 de junho de 2014

«Perdeste a direcção de casa
Com a tua sede de perfeição»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 233

«Vejo o fundo da garrafa
Acendo mais outro cigarro
Tudo serve de cinzeiro
Quando os deuses brincam é para magoar!»



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 220

Quantas vezes te odiei com medo de te amar...

«Casos graves de bem estar
Por mais que tenham, nunca têm a mais»


«O pior não é estar triste
O pior é não saber porquê»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 196
«Não é por nos desviarmos
Que evitaremos o nosso fim»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 193

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar

Só por ter dois sóis
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
E chamei casa a esse lugar

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por inventar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
E deixo o tempo decidir

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Eu sei que nenhuma vai ganhar



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 182
Esse teu passo inseguro
E o teu paraíso no olhar


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 181

A nossa história começa na total escuridão


«Ela sabe dizer-te quem foste, quem és e quem hás-de ser
Dás  por ti acenando a tudo o que ela disser »


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 166

Sou o vagabundo mais feliz que existe

«(...)

Não consigo pensar
Deve ser do cansaço de me ocupar demais
De coisas banais  »



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 162

O LADO ERRADO DA NOITE

«Procuro na escuridão o centro da carne»


«(...)

Existem mil produtos para encher o vazio
Criámos computadores para ampliar a memória
E todos nós temos disfarces para aumentar a confusão
Só não sabemos como fazer o amor durar
O grande enigma continua a dar-nos cabo do coração.»




Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 145

domingo, 8 de junho de 2014



JOHN: O pensamento do Beatle de cabelo comprido no santuário do século XIX. Por favor, parem com esse disparate. Vai para casa. Não gostamos de pessoas como tu. Vai ao médico para seres normal, estás a perceber? Vai ao médico. Nós vamos hoje ao psiquiatra, talvez ele nos ponha bons. Não nos entendemos a certos níveis, como viste. Estava com marijuana. Lindo, lindo. Continua a fumar. Não é ilegal. Lindo, lindo. Hey, aqueles tipos são tão duros como a imprensa real.



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 27

GENESIS, CHAPTER 2

21. And the LORD GOD caused a deep sleep to fall upon Adam, and he slept; and he took one of his ribs, and closed up the flesh instead thereof;

22. And the rib, which the LORD GOD had token from man,
made he a woman, and brought her unto the man.

23. And Adam said, This ''is'' now bone of my bonés, and flesh
of my flesh: she shall be called Woman, because she was token
out of man.

24. Therefore shall a man leave his father and his mother, and
shall cleave unto his wife: and they shall be one flesh.

25. And they were both naked, the man and his wife, and went
not ashamed.


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 8

domingo, 1 de junho de 2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

PAISAGEM
                         Uma
                          rede
                          verde
                          escreve
                          a sede.



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 124

Gaivota de pedra

Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 104

TRANSMISSÃO DA NOITE



 "Ele diz com os braços que há uma coisa viva que possui a razão no interior da razão.

Ele diz: A luz noite. Diz com os seus braços: o tempo não existe. ...
Diz: se os animais pudessem falar não teriam nada para dizer.
Diz: até na noite a palavra se transmite.
Ele diz: também a palavra transmite a noite com ela.

Também a luz, se deixarmos de falar, acaba e desaparece."
Valère Novarina. Sud- Express : Poesia Fancesa Hoje
«(...), que me pintavam como tendo um carácter taciturno e fechado, e quis saber a minha opinião a este respeito. Respondi: «É que, como nunca tenho quase nada a dizer, prefiro calar-me.»


Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 84

interrogatórios de identidade


«Há muito tempo, há muito tempo...
Nós passamos tanto tempo
A estragar o tempo.»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 144

''missa dos pássaros''


Quando um homem tem vida de cão mais lhe vale ser morto

Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 105
«Dói se pensarmos que isto é o fim
Mas resta sempre alguma coisa.»



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 101

«(...)

Tu que foste traído
Tu que atraiçoaste
Tu que deixaste cair
Aquilo em que acreditaste
Tu desesperado que andas a monte
Não faltes ao teu encontro
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte

Leva o teu corpo e leva a dor
Não esqueças os teus desejos
Sê violento se acaso
Te amedrontarem os seus beijos
Mas não te faças rogado, é por ti que ela espera
Vai, corre ao seu encontro
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte





Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 94/5

domingo, 25 de maio de 2014

BALADA DUM ESTRANHO

Hoje acordaste duma forma diferente dos outros dias
Sentes-te estranho, tens as mãos húmidas e frias
Tentas lembrar-te de algum pesadelo mas o esforço é em vão
Parece-te ouvir passos dentro de casa mas não sabes de quem são

Deixas o quarto e vais à sala espreitar atrás do sofá
Mas aí tu já suspeitas que os fantasmas não estão lá
Vais à janela e ao olhares para fora sentes que perdeste o teu centro
E de repente descobres que chegou a hora de olhares para dentro

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu

Vês o teu nome escrito num envelope que rasgas nervosamente
Tu já tinhas lido essa carta antecipadamente
E os teus olhos ignoram as letras e fixam as entrelinhas
E exclamas: ''Afinal...estas palavras são minhas!''

O caminho para trás está vedado e tens um muro à tua frente
E quando olhas p'rós lados vês a mobília indiferente
E abandonas esta casa onde sentiste o chão a fugir
Arquitectas outra morada mas sabes que estás a mentir

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 93

MAL E BEM/ ESTAÇÕES/SÓ MAIS UM BEIJO (COPENHAGA, 78)

Tu tens que estar sempre atento
Se queres sobreviver
Tens de saber travar
Não basta saberes correr

E quando deres por ti na rua errada
Não percas tempo a tentar disfarçar
Apressa-te a encontrar a rua certa
A vida é uma enorme encruzilhada
E qualquer um se pode enganar

Tu tens que ser muito rápido
Senão vais-te afundar
Tens de saber cair
Se é que te queres levantar

E quando tiveres monstros na cabeça
Não penses mais nisso
Há tanta coisa gira para fazer
Não te esqueças que tu és o que tu pensas
Um pensamento feio é como um cancro
Se o guardas, ele não pára de crescer

Mal e bem
Estamos sempre a mexer
Mal e bem
A ganhar e perder
Mal e bem
Agora a subir, mais logo a descer

E o que está mal neste instante
Pode estar bem a seguir
E, na verdade, o importante é o que tu estás a sentir
Irmão, tu não sejas tonto
Que tarde ou cedo chega a hora de partir

Tens de trazer a cabeça
Bem junto ao coração
Que é para poderes saber
Qual é a tua missão
Tudo o que se passa à tua volta
Está bem ligado ao fundo do teu ser,
E custa vermos tanta gente à espera
De frutos que, afinal, eles não merecem
Quem não semeia, não tem direito a colher

Mal e bem
Estamos sempre a mexer
Mal e bem
A ganhar e a perder
Mal e bem
Agora a subir, mais logo a descer

E o que está mal neste instante
Pode estar bem a seguir
E, na verdade, o importante é o que tu estás a sentir
Irmão, tu não sejas tonto
Que tarde ou cedo chega a hora de partir

Só mais um beijo
Antes de eu me abrir
Só mais um beijo
Antes de eu partir



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 77
«Eu sei que um dia acabamos por nos reencontrar
Nalguma esquina sem luz onde se queimem ilusões
Eu sei que um dia acabamos por nos cruzar
E dizer de novo...adeus»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 55

ALEGORIA SEGUNDA

De poetas e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo:
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe: saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as: tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.

Dizias ontem que o verão ardia
nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo:
o verão não morreu, esta pedra é o verão.

E tudo permanece. E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 90
«a distraída
erosão dos lábios.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 86
«Escrevo contra o vento,
frente ao mar.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 63
«É preciso, amor,
dar um nome a este instante.»



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 57
«e adormecemos, hirtos, de costas para o
        mar.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 51

Évora, 8 de Setembro de 1967

Ao Manuel Patrício

Os mortos
comem flores
e granadas
e lágrimas
e beijos
que os devoram.
Enxutos,
os olhos
dos mortos
choram.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 48-49

Uma gaiola partiu à procura dum pássaro.



«Resta-me o abandono passivo a uma íntima ternura, à sua obscura beleza, para lá de tudo o que é belo e que me humedece o olhar. Como quem ama ainda uma mulher e lhe não pode tocar. Como quem envelhece e entende a vida apenas na sua longa melancolia.» 
 
Vergílio Ferreira
  «Todo o trabalho da arte procura assegurar a aparição de si a si mesmo a colmatar todos os vazios, os escoamentos, as rupturas do eu, as quebras da memória, os espacejamentos da consciência:


 « Que a distância de ti a ti seja por ti preenchida.» Vergílio Ferreira


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 75
   «Valerá a pena destruir Deus, o Deus da Religião ou o Deus da Política? «Derrubar o deus do altar. E depois, o altar. E depois, o sítio dele. E depois, a memória dele. E tudo ficar certo como se não. Derrubar o sinal e o signo. O visível e o invisível. E tudo ser como se. (...) E tudo funcionar como se não. Como se o invisível fosse ainda.»
 


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 64
«Procuram no sítio das casas a memória do que lá ficou, dos deuses e da sua ordem com que se organizava a vida e ela tinha sentido e era verdade, da tranquilidade do sono à noite quando o dia se cumprira.»
 
Vergílio Ferreira
 
  «Esta imagem é tanto mais exaltante quanto a ela se vem contrapor a multiplicidade incontrolada do presente pós-terramoto e pós-revolução: é a desordem instalada no inferno das ideologias e no alarido tempestuoso das opiniões, é a ramificação de cada coisa no seu contrário e no contrário do seu contrário, é a bifurcação demente de todas as evidências em verdades e contraverdades sem prova nem acalmia.»  Eduardo Prado Coelho p. 62
 
 
«(...) Carolina, a prostituta, o ser mais divinamente animal desta galeria de sonâmbulos, reivindica para sua aldeia a reconstruir: « O que eu penso é que devia ficar tudo como estava. Não é preciso pensar muito. Tal e qual como estava. Eu por mim queria a nossa terra como era.» Vergílio Ferreira




Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 62

«atacar uma mulher na boca» - Vergílio Ferreira

as hemorragias do eu


«Pela primeira vez desde que nos conhecíamos, estendeu-me a mão num gesto envergonhado e eu senti-lhe as escamas da pele. Teve um sorriso breve e, antes de sair, disse: «Espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu.»
 
 
Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 67

de tempos a tempos zangávamo-nos

«Não fora feliz com a sua mulher, mas, por fim, habituara-se a ela. Quando esta morrera, sentira-se muito só. Pedira então, a um colega de escritório, que lhe desse um cão, e fora-lhe oferecido a este, quase recém-nascido. Tivera que o alimentar a biberão. Mas como o cão vive menos do que o homem, tinham acabado por envelhecer juntos. «Tinha mau feitio», disse Salamanco. «De tempos a tempos zangávamo-nos. «Mas apesar disso, era um bom cão.»
 
 

Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 66
«Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não. Ficou com um ar triste.»

Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 58

''sopro húmido e escuro''

'' a carne branca das raízes''

quinta-feira, 22 de maio de 2014


calar ou adoçar

«Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!...»

Fernando Pessoa/Bernardo Soares

insónia: equivalente do tédio, do cansaço, da dor ou desassossego

«O tédio...Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer - tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. (...) O tédio...Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio...É como a possessão por um demónio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma.»

Fernando Pessoa

não-amor; não-ódio

in-diferença

« O que dói e pesa em Pessoa dói e pesa fisicamente - algo de que nem sempre os literatos que o viam como cerebral se deram conta. »
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 31

o humor é a versão diurna do desassossego

Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 31

às vezes dizemos


às vezes dizemos
                            uma jarra
       pensando nas flores que lá
       poderiam crescer

às vezes dizemos
                          summertime
      como se um negro
      nos pudesse ouvir

às vezes dizemos
                        palavras
      como se as prisões
      pudessem ter sentido


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 36
«(...)

Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 30

aves nocturnas


a amante e a amada

*


Há em teus olhos, dados ao momento,
uma tristeza de água reprimida,
que é como o pressentimento
duma próxima despedida.

Tristeza que faz lembrar
dias perdidos de outono
com luz pálida a incidir
nas folhas, mortas de sono.

Deixa que a esperança os molhe,
os inunde de alegria.
Cada noite passa e colhe
o gosto de um novo dia.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 21
«Só terás remorso
do que possas fazer e o não fizeres.»

Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 20

Vens cheia de orvalho, lágrimas da noite



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 18

terça-feira, 20 de maio de 2014



«Sei que estás a sofrer
O teu homem foi-se embora outra vez
Partiu como um furacão
O que só pensas no bem que ele te fez...

Tentas dormir
Mas o teu sono parece ter voado com ele
E a noite colou-se às tuas costas
Ai, disforme como um pesadelo

Mas, ouve bem, meu amor:
Não é tarde para sorrires outra vez
Ainda há estrelas  no teu olhar

(...)»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 53

O VELHO NO JARDIM

Está um velho no jardim
Com cabelos de algodão
Tem dois olhos cor de mar
E uma cruz em cada mão
Uma cresce dum altar
Outra é a uma ilusão
Continuo a subir

Vejo um milhão de ideias falsas
Num crucifixo conjectural
Concebido para salvar almas
Da asfixia existencial

Está um velho no jardim
Que me olha com rancor
Tem dois olhos de marfim
Afiados no pudor
Mas as coisas que ele faz
Não parecem ter calor
Continuo a subir

Vejo uma vela adulterada
Feita de sangue e de cetim
Garantida por dois mil anos
Mas que está a chegar ao fim



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 51
«Um dia entrei demais nos teus olhos
E vi o rancor
Que te anda a suicidar
E te impede de ver
Por trás do teu sorriso sem nome
Cresce a frustração
E eu já não tenho saco
Para te compreender.»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 49
«Não me masturbo mais
Com Cristos de cordel»

Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 47

Improvisa um despertar

DIZEM QUE NÃO SABIAM QUEM ERA


Ah! Dizem que fazia amor com qualquer um
E que se drogava...

Ah! Dizem que foi apanhada a ver o mar
Com outra mulher...

Ah! Dizem que foi encontrada morta
Os pulsos cortados...




Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 43
«Se alguma vez pudesses ver
O que eu, sem querer, via em ti»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 38

VIAGEM (MULHER)

Abre o portão e improvisa a partida
Leva emoções e alguns livros na mão
Deixa o destino e vai recomeçar
Do outro lado do espelho
Não vende nada, o que tem é para dar
Agora é mulher
Já não é flor pisada

Tu és a tal há tanto tempo deitada
Sempre a sofrer, sempre a morrer por amor
Mas já é tempo de abandonares de  vez
Esse teu berço-memória
Vais ter orgulho no teu nome de mulher
Agora estás de pé
Já não és flor pisada

Saltaste o muro e vais continuar
Do outro lado da vida
Rompeste as grades do teu jardim-prisão
Agora estás de pé
Agora és mulher
E o teu nome é liberdade!


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 36

domingo, 18 de maio de 2014

«Human Cello» Charlotte Moorman & Nam June Paik, 1965


(«Passagens de zarzuela e trechos avulsos entoados pelo chefe da brigada Elias Santana durante o seu passeio nocturno:

-La Violetera
-O último Couplet
-Carmen, de Bizet
-Oh, Sole Mio
Os Sinos de Corneville.)





José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 250

flores funerárias

Estevais

«Estevais é o que há à volta deles, estevais e pedras, ausência de árvores. E sol. O sol a rebrilhar no verniz das folhas das estevas e o cheiro morno que elas deitam e que tem o denso do suor íntimo, carnal.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 225

fuma com a boca colada ao joelho

José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 209
   «Elias vigia-a espalmado na superfície da porta, olho quedo. Ali a tem ao real e por inteiro. Fechada num círculo de vidro, ali a tem. A pedir com um corpo daqueles uma boa verga que entrasse toda, que a explodisse com descargas de esperma a ferver, daquele que é grosso e pesado, do que cresta, e que a encharcasse de alto a baixo desde os olhos até às nádegas, o que ela queria era isso, que lhe fossem pela espinha acima e a pusessem a berrar pela mãe, era o que a cabrona estava a pedir, e dá-me, ai dá-me, dá-me mais, assim, assim, pois então. Mesmo distanciada e reduzida pelo vidro panorâmico do ralo é uma provocação, uma agressão da natureza, a grandacabrona.»
 



José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 208

prado de fetos

rendez-vous aos passarinhos

carne da tua carne

«Vive entre estrangeiros, mas para eles é também um estrangeiro. Por isso alguns hão-de amá-lo, como Maria, sua amante, que lhe dá importância «porque é bizarro»; e outras detestá-lo-ão por isso, como aquela multidão do tribunal, cujo ódio ele sente de súbito subir contra si.»


Introdução de Jean-Paul Sartre ao livro O Estrangeiro de Albert Camus. (p. 12)

«O homem absurdo não se suicidará: quer viver, sem abdicar de nenhuma das suas certezas, sem dia seguinte, sem esperança, sem ilusões, e também sem resignação. O homem absurdo afirma-se na revolta. Fixa a morte com uma atenção apaixonada e esta fascinação liberta-o: conhece a «divina disponibilidade» do condenado à morte. Tudo é permitido, visto que Deus não existe e visto que se morre. Todas as experiências são equivalentes, convém somente adquirir a maior quantidade possível delas.»

Introdução de Jean-Paul Sartre ao livro O Estrangeiro de Albert Camus. (p. 11)
«Há dias em que ...encontramos como uma estranha aquela a que amamos.»

Albert Camus

Durmo e desdurmo

«Durmo e desdurmo. Do outro lado de mim, lá para trás onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, a nenhuma gota que cai se ouve cair.[...] Sinto  a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece - não é minha.»

Fernando Pessoa

um passo atrás

«um passo antes do clímax, um passo antes da revolução, um passo antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida - que, por uma espécie de forte íman ao contrário, eu não transformava em vida»

Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. p. 30

(escrever é perder-se: «escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda.»


Fernando Pessoa

Floresta do Alheamento

«Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram ali!...Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa...»

Fernando Pessoa
Amiel

« a paisagem é um estado de alma»



Fernando Pessoa

um estado de alma é uma paisagem

O espaço literário

« O espaço literário começa por ser um lugar de solidão essencial anterior a qualquer obra: «A solidão do escritor, esta condição que é o seu risco, viria do facto de ele pertencer, na obra, ao que existe sempre antes da obra. Através dele, a obra realiza-se, adquire firmeza do começo, mas ele próprio pertence a um tempo onde reina a indecisão do recomeço. A obsessão que o liga a um tema privilegiado, que o obriga a voltar a dizer o que já disse, por vezes com o poder de um talento enriquecido, mas por vezes com a prolixidade de uma repetição extraordinariamente empobrecedora, sempre com menos força, sempre com maior monotonia, ilustra esta necessidade de voltar ao mesmo ponto, de repassar pelas mesmas vias, de perseverar recomeçando o que para ele nunca começa, de pertencer à sombra dos acontecimentos, e não à sua realidade, à imagem, e não ao seu objecto, ao que faz que as próprias palavras se possam tornar imagens, aparências - e não signos, valores, poderes de verdade»

Blanchot, L'espace littéraire, p. 14

Ordres et Désordres

«(...) quer a atitude fetichista ou a melancólica, tendem a ser culpabilizantes práticas de frustração.»


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 16

crítico fetichista

  «Digamos que o universitário tende para a figura do crítico fetichista, isto é, aquele que, observemo-lo sem má intenção, tendo verificado a ausência de pénis na mãe, se recusa a admitir essa realidade, pela ameaça de castração que ela faz recair sobre ele próprio, e cria uma realidade substitutiva que é fétiche. Qual a função do fétiche? Por um lado, ele está no lugar da mãe. Mas, por outro, este objecto substituto, na medida em que pretende negar uma ausência, é em si mesmo o signo dessa ausência. O «universitário» procura cercar a obra literária com todo um ritual sádico em que o saber funciona, na sua acumulação ilimitada, como forma de predação. E isto tanto se pode verificar nas antiquíssimas práticas de um greimasianismo selvagem. O texto crítico está no lugar do texto criticado. Mas este processo de substituição é a marca da definitiva ausência do texto criticado. Tal ausência, geradora de alguma angústia que circula nos corredores do ensino da literatura, tende a ser anulada pela acumulação maciça de um saber sem fim - o fetichista coleciona no campo do finito na convicção de que a quantidade poderá assegurar o salto para o lado do infinito poético.»


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 15

''Da minha aldeia não se via o mar.''

Eduardo Lourenço

sobre a crítica literária

«mas o tribunal de toda a escrita está em toda a parte e em parte alguma»

Eduardo Lourenço
«Em sentido radical, não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo.»

Eduardo Lourenço. Tempo e Poesia. Inova, Porto, 1975., pp.25-26

face auto-bio-gráfica

sábado, 17 de maio de 2014


«quebra-lhe o vidro da virgindade, e torna o resto maleável.»

William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 139

esgrima de virgem

«(...); se calquei algum verme, foi sem querer, e logo chorei por isso.»



William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 108
    «O que vale é que as putas dão para tudo, diz. Não houve aquela Madalena que depois de morta foi santinha?»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 201

emputecida

por entre as iluminações do Whisky

José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 200

sendo de mau esquecer e de pior perdoar

«Dita margarida essa que em data para olvidar tinha um dos seus desentendimentos com a Judite por causa de um baile de facadas e que, sendo de mau esquecer e de pior perdoar, passara aviso às restantes margaridas e respectivos interessados.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 199
«O comodismo dos generais portugueses sujeita-os à chacota e à degradação.» Gen. Humberto Delgado, Carta aos Generais.



José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 196

«Elias só guardará dessa noite a nódoa que lhe assinala o pijama masturbado. Uma lágrima crestada que ele irá levar à torneira.»



José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 187

Elias masturba-se.

   «Elias masturba-se. Sempre de olhar parado, vendo para dentro a desfocar-se (o olhar de quem se deixa ir de viagem) enquanto a mão, o rosto e a boca dela o trabalham lá em baixo, e tudo se concentra, Elias vai num espaço fechado, numa caixa de espelhos, a cabeça solta, desligada dele. Tem o corpo tenso, em arco. O pénis recurvo não pára de ser percorrido por uma cadência saboreada e insistente, e ele de olhar imóvel diante dum vidro (que já não é de espelho, mas transparente) diante dum para-brisas, um autocolante, um espelho retrovisor, para baixo e para cima, de mãos no volante, ele para baixo e para cima, as molas do assento a rangerem num movimento mecânico e igual. Sempre.»

José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 189

beauté



«Vagueei todos estes anos por um mundo de mulheres procurando-te, Morte.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 188
« sr santana no me dá governo vir às sigundas que é dia do óspital ódepois espelico Lucinda.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 187

Beleza ou Deveza.

dor de corno

PAGELA DA IRMÃ MARIA
   DO DIVINO CORAÇÃO

Fixe os 4 pontos que se vêem na imagem
e conte até 20 sem desviar o olhar,
diante duma parede branca.

Feche os olhos e abra-os imediatamente.

Verá aparecer na parede a Miraculosa
Irmã Maria do Divino Coração,
Escrava do Senhor.

                                   (Proibida a reprodução)

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 105

quarta-feira, 14 de maio de 2014

palavras labiosas


"Não penses nas coisas que foram e passaram,
meditar no passado aviva o sofrimento.
Não penses no que vai acontecer,...
meditar no futuro enche-te de incerteza.
Melhor, de dia, sentado na cadeira como um saco,
de noite, deitado no leito como uma pedra.
Quando a comida chega, abre a boca,
quando o sono vem, fecha os olhos.
Estas as coisas úteis ao teu corpo,
quanto ao subir e descer,
vida breve ou vida longa,
não penses, deixa tudo ao acaso.
Eu tenho ainda um luxo,
quando meu espírito se agita,
canto uma canção louca
sobre uma taça de vinho."



Bai Juyi. Poemas

brita-ossos

o preço da persistência

chavascal

«Sentia em si paz e brandura, tal como das vezes em que, depois de um ano inteiro de fome angustiada, acaba de possuir uma mulher.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 100

ferroar

  «Loas respondeu-lhe com um olhar estranhamente suave. Olhar sem animosidade e sem compaixão: liso como um lago nas madrugadas de Estio.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 100

« Ninguém poderia suspeitar a tempestade que, no seu íntimo, o ia transformar noutro homem.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 99

terça-feira, 13 de maio de 2014

«Se vives, Péricles, tens um coração que deve estalar de dor


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 93

SIMÓNIDES

  «Oh! como sois peremptória, senhora! (À parte.) Do coração o estimo. - Eu vos amansarei; eu vos farei ser obediente.»

William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 76

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Wassily Kandinsky, Tanzkurven Zu den Tänzen der Palucca, Das Kunstblatt, Potsdam, vol. 10, no. 3 (1926)


terreola

    «O Vieirinha reflectia profundamente nos acontecimentos e apetecia-lhe chorar. Não um choro íntimo, discreto, de sóbria mas contrita penitência - mas um choro por assim dizer de exortação.»
 
 
Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 85
TAMBORES NA NOITE #2

"Vivo,na verdade, em tempos sombrios.
É insensata a palavra ingénua. Uma fronte lisa
revela insensibilidade. Aquele que ri...
é porque ainda não recebeu a notícia terrível.

Que tempos estes
em que falar sobre uma árvore é quase um crime
porque equivale a cantar tantas perfídeas!
Esse homem que vai tranquilamente pela rua,
conseguirão os amigos encontrá-lo
quando precisarem?

É verdade que ainda ganho a vida
Mas, creiam, é pura casualidade. Nada
do que faço me dá direito a fartar-me.
Libertei-me por acaso. (Estaria perdido se a sorte se me acabasse).
Dizem-me:«Come e bebe! Goza o que tens!»
Mas como posso comer e beber
se estou a roubar ao faminto aquilo que como
e o meu copo de água faz falta ao sedento?
E mesmo assim, como e bebo.

Gostaria de ser também sábio.
Os velhos livros explicam a sabedoria:
fugir das lutas do mundo e deixar passar
sem inquietação o nosso curto tempo.

Libertar-se da violência,
responder ao mal com o bem,
não satisfazer os desejos e até
esquecê-los; é essa a sabedoria.
Mas não posso fazer nada disto;
vivo na verdade em tempos sombrios."


Bertolt Brecht
. "Poesia, Textos, Teatro"

Antiqua Venezia


sedição

nome feminino

levantamento popular; motim; rebelião

(Do latim seditiōne-, «idem»)
«César, os que vão morrer saúdam-te.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 28

domingo, 11 de maio de 2014

«(...) não fez mais do que atravessar uma casa estranha sem prender o coração nem o espírito. O lar doméstico não teve para ela senão aborrecimentos (...)»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 23
«Há os que se divertem a ver um peixe vivo colocado sobre o fogo num vaso de cristal, a debater-se na água até morrer.»



Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 17
«Rodeiam o amo de cuidados assíduos e de atenções incessantes, que o dispensam de toda e qualquer preocupação do menor esforço. Transportam-no, alimentam-no, deitam-no como a uma criança. Os seus desejos são adivinhados, os seus prazeres são preparados, perde o hábito de pensar e de querer.»


Latour Saint-Ybars. Nero. Edição Amigos do Livro, Lisboa., p. 15
Avancei penosa e desequilibradamente em di-
recção ao termo desse trágico funeral.

                                                   Ch. Nodier - Smarra.

Pieta (2014)


«(...) para os homens as dádivas das mulheres são imprudência.»

William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 63
SIMÓNIDES

   «O que quer dizer que a beleza tem poder e vontade: tanto pode inflamar como matar.»


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 56
«Assim como as jóias perdem o brilho quando desprezadas, assim os príncipes perdem a fama quando não impõem respeito.»


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 54

PÉRICLES
 
   «Eu trato de esquecer o que fui, mas o que sou força-me a pensar em mim. Estou transido de frio; tenho as veias geladas, e da vida só me resta o alento suficiente para vos pedir auxílio; se mo recusais, rogo-vos que, em atenção a eu ser homem, me enterreis quando tiver morrido.»


William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p 46

sonho traído

margaça


carne prostituída

«A brancura da sua pele parecia uma mancha de luar no negrume do vestido.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 75
«O dinheiro compra a mulher, mas não a prende a nós, percebeste tu? Não compra a simpatia.»


Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 65

quarta-feira, 30 de abril de 2014


DA POSSIBILIDADE POÉTICA


"O poema da mente no acto de encontrar
Quanto baste. Nem sempre teve
Que encontrar:a cena estava montada, repetia o que
Estava no guião.
Então o teatro foi mudado
Para outra coisa. Seu passado era uma lembrança.
Ele tem que estar vivo,que aprender o discurso do sítio.
Tem que enfrentar os homens do tempo e encontrar-se com
As mulheres do tempo. Tem que pensar sobre a guerra
E tem que encontrar quanto baste. Tem
Que construir um novo palco. Tem que estar nesse palco
E,como um actor insaciável, vagarosamente e
Com meditação, dizer palavras que ao ouvido,
Ao mais delicado ouvido da mente, repitam,
Exactamente, o que ele quer ouvir, ao som
Das quais, uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como de duas pessoas,como de duas
Emoções a tornarem-se uma. O actor é
Um metafísico no escuro,tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda de metal que dá
Sons a passarem por súbitas exactidões,na totalidade
A conter a mente, abaixo da qual não pode descer,
Além da qual não quer elevar-se.
Deve
Ser o encontrar uma satisfação, e pode
Ser de um homem patinando, uma mulher dançando,
uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente."
-"Ficção Suprema"
- Wallace Stevens

terça-feira, 29 de abril de 2014

We don’t forget, but something vacant settles in us.
― Barthes

Como a “sombra que uma criança persegue com a vela”, na sua escrita Rui Nunes atingiu o limite do horror, iluminando o seu mecanismo de absurdos. Diogo Vaz Pinto entrevista o autor, que, ao reclamar a vulnerabilidade da pobreza como condição para o homem estreitar a sua relação com a realidade, encerra a sua obra como um dos exemplos mais notáveis de uma literatura actuante. António Pedro Santos fotografou o escritor que o grande público não soube reclamar

Rui Nunes (Lisboa, 1947) começou a publicar em 1968 e, com mais de 20 títulos de um género inclassificável editados, hoje admite que não escreverá mais, não apenas porque a progressiva cegueira que o afecta há vários anos já não o deixa, mas também por sentir que alcançou um momento final. Referência de um público minoritário, na sua clandestinidade esta obra alcançou um prestígio enorme. "Armadilha" e "Uma Viagem no Outono" saíram recentemente na Relógio D'Água - o último, numa edição limitada a 150 exemplares, só pode ser adquirido por encomenda directa à editora.

De livro para livro, há na sua escrita uma apropriação da linguagem que supera toda a ficção: uma mesma visão, um negrume...
Esse negrume, para mim, é mais uma revelação de intimidade com a morte das coisas. E com a pobreza das coisas. A humildade dos próprios objectos: isso fascina-me. Está muito ligado ao meu mundo, a um mundo que não foi fácil, desde criança. O contacto com a morte e com a doença, com as dificuldades e com a violência, foi-me construindo uma relação com a realidade que não se deixava seduzir pela sua aparência mais benigna. Por outro lado, fui-me apercebendo lentamente de que a língua, que qualquer linguagem, especialmente na sua articulação, manifesta poder. E há em mim uma grande repugnância pelo poder, por qualquer forma de poder. O poder dos sentimentos, o poder sobre o outro. Ora esse poder manifesta-se na linguagem, na chamada fluência - em que as palavras se procuram e se encontram umas às outras, independentemente daquele que fala.
Neste último livro ("Armadilha") refere isso ao falar no modo como as pessoas tendem a ouvir os políticos e a sentir que por ouvi-los falar bem estes sabem do que falam.
Que há verdade naquilo. E há certeza. É exactamente isso, a fluência: parecer que um discurso, quando se produz com alguma rapidez, prova alguma coisa. E é exactamente isso o que sempre me perturbou. Porque as palavras têm uma carga de malignidade tão grande que quando se procuram fazem-no para deter poder. E ultrapassam aquilo que nós pretendemos dizer. Daí uma espécie de vigilância ou de suspeita em relação à palavra e em relação ao discurso.
Há vários livros seus - lembro-me, por exemplo, de "A Boca na Cinza" - em que a sua linguagem, a violência a que propositadamente a sujeita, parece uma forma de se tornar a si e a quem o lê muito consciente dessa fluência.
A minha suspeição em relação ao poder da linguagem sempre me levou a um determinado tipo de escrita. Não necessariamente de forma consciente, mas é assim porque a suspeita existe. Ela existe e organiza a minha linguagem. É pela crueza da linguagem que a verdade mais simples se manifesta. E a crueza pode estar no palavrão, mas também pode estar na desarticulação sintáctica. E é interessante ver que as pessoas não reagem mal às alterações morfológicas, muitas vezes nem sequer às sintácticas. Aquilo a que reagem mal é à pontuação. Aliás, foi uma descoberta tardia minha. Ouvia as pessoas dizer: "Ai, aquelas vírgulas estão mal postas!" Por exemplo, em relação ao Saramago. Eu gosto do Saramago. Gostava dele como pessoa e gosto do que escreveu, embora não tenha muito a ver com a minha escrita. Mas a vírgula, aquela paragem, aquele cortar o fôlego, aquele sopro que se quer prolongar e não consegue, isso é que é terrífico na escrita. E é por aí que se introduz a violência.

Pensa que as pessoas se submetem à linguagem e a um conjunto de ideias que não conseguem dominar totalmente e que portanto acabam por ser súbditas no seu uso?
Quando leio um grande livro tenho um medo terrífico do que vem a seguir. Porque um belo livro pode ser uma bela perdição para quem o escreveu, e esse é sempre o meu medo: que um belo livro se transforme numa bela perdição. Isto é, lê-se um modelo do qual a pessoa já não consegue sair. E penso que isso é uma das coisas terríficas na literatura portuguesa. As pessoas submetem-se rapidamente a um modelo e sentem-se bem nele. E quando nos sentimos bem na linguagem que produzimos, no próprio discurso que produzimos, isso só significa para mim que estamos numa gaiola. Pressinto que um dos problemas da literatura portuguesa é exactamente esse. O talento que muitas vezes encerra a pessoa na sua própria gaiola.
Foi viver para a Áustria, numa zona muito isolada. Porque procurou esse isolamento?
Foi natural. Quer dizer: o isolamento está ligado a um certo desgosto do mundo. Não sou religioso, se fosse teria ido para um convento, possivelmente. Há em mim essa necessidade. O encontro comigo mesmo dá-se no silêncio, e é mesmo um silêncio absoluto. Há uns tempos, durante uma semana, tive o cuidado de medir o tempo que passava em conversa com os outros e fiquei espantado. Verifiquei que era ainda menos que aquilo que imaginava.

O desgosto na sua relação com os outros estava ligado a uma desilusão daquilo que o Rui esperava, daquilo que em si criou e que por isso esperava encontrar no outro?
É difícil dizer. É tudo. Mas em criança eu já era assim. Tinha fases em que era extremamente endiabrado e depois tinha fases em que me isolava absolutamente. Era capaz de passar horas na praia a olhar para o mar sem ninguém por perto. Oscilava entre uma situação e outra. Hoje tenho esta necessidade absoluta de silêncio, e por isso não gosto de estar em Portugal.
Mas pela relação com os portugueses?
Não. Para já, não tenho nada desse sentimento do patriota. Não gosto dos ícones da pátria, não gosto de pátrias, fronteiras e hinos. Mas o problema é o ruído. Estou sempre a ouvir gente. Estamos aqui e estamos a ouvir gente. As casas parecem-me todas de papel. Os ruídos atravessam as casas. Não há um minuto de silêncio. Chego a Viena e sinto-me em casa, tenho uma espécie de felicidade do reencontro. Não é com a casa, é com o silêncio.

Isso serena-o ou liberta-o para pensar?
Permite-me ficar mais próximo de mim. É o silêncio dos ruídos naturais. Tudo é natural, é evidente, mas eu gosto do ruído do vento, da chuva, da neve a bater. Gosto das gralhas, gosto de ouvir esses ruídos. É um lugar-comum, mas são esses ruídos o grande silêncio. Isso aqui não tenho. E depois há pouca sobriedade nas palavras, as pessoas falam desesperadamente.

Há a sensação de que o estado de solidão é um estado dramático em que uma pessoa cai quando fracassa e então esse desespero pode surgir por as pessoas sentirem que devem falar, que se uma pessoa estiver bem é comunicadora?
Exacto, é isso. E não interessa o que a pessoa diz, é preciso é dizer. É a fala contínua. E quem não diz continuamente é suspeito. Quantas vezes se ouve: "Porque é que estás calado?" Eu não preciso de justificar-me por estar a falar, mas preciso de justificar porque estou calado. "Estás tão calado!" E eu digo sempre: "E tu, porque é que estás a falar tanto?" Aquilo que se pretende é que o discurso da pessoa seja uma confissão contínua. "Fala porque ao falar mostras-te. Porque ao falar tornas-te claro. Não sejas obscuro."
Há um poeta que reclama isso na sua obra. "Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro." Herberto Hélder reclama essa condição, mas se nele ela surge algo deslumbrada ou fascinada, o Rui, se primeiro reclama a obscuridade, também avisa o leitor: "Cuidado com esta ciência e com este poder que eu exerço." Ou seja, não parece entrar de livre vontade no canto. Nunca pretende cantar...
Está a tocar num ponto absolutamente essencial da minha escrita. Gosto muito da escrita do Herberto Hélder. Mas no Herberto existe o fascínio da linguagem, em mim não existe. A linguagem não me fascina. Tudo aquilo que eu sou está de certo modo aí, e eu estou condenado a ela [à linguagem], mas ela não exerce nenhum tipo de fascínio sobre mim.

Num verso, Sá de Bandeira diz: "m'espanto às vezes, outras m'avergonho." Parece que na relação das pessoas com a poesia herbertiana há sobretudo o espanto, enquanto na sua a vergonha é o sentimento mais forte. Até porque a obra do Rui é muitas vezes dimensionada por uma reflexão sobre aquilo que foi a violência exercida sobre o homem no século xx, como o Holocausto. Num período em que parece ser muito fácil descartar o passado, e em que se pensa que um passado longínquo é algo que sucedeu há 50 anos, ao passo que antigamente uma coisa de há 50 anos era ontem... Acredita que a vergonha se tornou hoje a grande lição que um homem humilde pode dar a si neste tempo?
A vergonha é a expressão da própria consciência. Algum passado está a desaparecer. Como o passado se aproximou muito do presente, parece que é dominado pelo presente ainda, e que eu no presente, de certo modo, consigo controlar esse passado, porque nós verificamos que o passado, por exemplo para os políticos, é um passado próximo, está ali mesmo na fronteira do presente. E esquecem que o passado que os move está bem mais longe. O Holocausto, o inominável da situação, ainda hoje nos move sem nós sabermos. Desde miúdo que convivi com pessoas que viveram essa situação. Algumas já morreram, mas durante 30 e tal anos, quase 40, convivi com pessoas que estiveram num campo de concentração, cujos irmãos e pais tinham morrido num campo de concentração. E vi como isso opera e como é que cala. A linguagem não chega para dizer as coisas.

A sua obra parece trilhar um caminho de confrontação, a diferença entre um silêncio que ainda vive e um silêncio que já morreu. O que é a morte?
Não é nada. Eu vi morrer a minha família quase toda. Às vezes chego a dizer que desde que nasci a minha família não fez outra coisa. A morte é banal. Só houve uma morte realmente perturbadora, a primeira morte. Para mim, a primeira foi perturbadora. Depois é a banalidade, no sentido em que a Hannah Arendt classificava o mal do Eichmann. Para já, a morte são as coisas mortas. E é impressionante a semelhança que existe para mim entre um homem morto e um bicho morto. Não consigo estabelecer a dignidade da morte do homem. É a mesma que na morte de um melro. Um ser morto é isso, e não há muito mais a dizer sobre ele. Mas isso também está ligado à minha ausência de crença. Eu bem gostaria de ser crente. A minha morte não vai ser diferente das mortes dos bichos todos, que morrem porque é essa a pobreza que nos espera. Não há, para mim, nenhum Deus que nos absolva, que redima, que me dê o que quer que seja.

A forma como as pessoas se entregam à crença - às tantas elevada quase a uma ciência, e debatida - com tantas a quererem enquadrar uma mesma crença... Pensa que isso as desresponsabiliza?
Desresponsabiliza, completamente. Eu sinto que no meu caso específico a ausência de crença, a impossibilidade que existe em mim de aderir ao ritual gera uma responsabilidade imensa em relação ao outro. Porque não há mais nada senão eu em relação ao outro e ele em relação a mim. Não há outra esperança, e isto é uma banalidade mas é uma belíssima banalidade: não há uma esperança senão no outro.

Acredita que pode haver uma transposição deste fenómeno mais pessoal ou convivencial para uma regra de âmbito político?
A política, no sentido mais amplo, entrou muito cedo na minha vida. E para mim nunca foi nem um drama nem um problema, como nunca houve uma opção. Eu estava lá, e sei porque é que estava lá. Por aquilo que lhe disse anteriormente: uma sensação de que todos nós somos responsáveis por todos os outros. E por um sentimento muito forte da fragilidade e da pobreza. Aquilo que lhe vou dizer é certamente uma vulgaridade, mas é assim mesmo e em política é isso que interessa. Às vezes perguntam-me: "Porque é que votas no Partido Comunista?" Eu sou do PCP, sou militante. E depois vêm-me com uma quantidade enorme de teorias... Eu conheço-as, quer dizer, estudei-as, mas não é isso. O que me interessa é a acção. No plano político, para mim, é tudo de uma simplicidade muito grande. É evidente que existe um discurso que o suporta. E como não gosto de fronteiras, é de certo modo o internacionalismo que funciona para mim, é a condição das próprias pessoas, e esta não tem fronteiras. A condição do trabalhador africano não é muito diferente da condição do trabalhador grego ou norte--americano. É a condição que me perturba. Depois posso discutir as teorias, mas não é isso que me move. Isso apenas justifica a posteriori as nossas próprias opções. E as opções políticas são sempre opções biológicas, no fundo.

Acompanha aquilo que os novos autores portugueses vão publicando?
Quando gosto deles, leio tudo. Ou lia. Sente-se pela forma como a linguagem se organiza se estamos perante uma escrita livre, uma escrita genuína, ou não. E quando encontro a genuinidade sinto- -me fascinado.
E ao longo dos anos sentiu algum tipo de evolução nos autores portugueses?
Na poesia, sim. É difícil falar em evolução, mas senti que apareceram belíssimos poetas. Na prosa não. A poesia sempre foi, e felizmente que foi, a parente pobre. É essa pobreza que lhe dá a dignidade toda.

Debate-se hoje o problema da ficção portuguesa actual não se dimensionar a si mesma, mas ser pré-embalada com o selo do circuito internacional de distribuição. Os autores identificam-se menos e exercem menos a cultura do lugar a partir do qual escrevem?
Aquilo que me perturba é ler textos e perceber que, desde a escolha das palavras, há autores que revelam ignorância da realidade. Há ali uma falsidade total, porque as palavras nomeiam coisas, mas essas coisas não se presentificam por nos referirmos a elas. São abstracções. O exemplo do tipo que descreve como ouviu as cigarras à noite só diz que nunca foi ao campo. E disso há muito na literatura portuguesa. Há coisas assim, espantosas. A verdadeira escrita começa sempre por algo de esplendoroso. A verdade começa sempre por algo de muito pessoal, e a verdadeira escrita conta aquilo que sabe, que viu e viveu. Esse é o princípio.

E esta nova ficção...
Nasceu velha, continua velha e vai morrer velha. Reduz-se à historieta. Mas esta literatura sempre existiu. Era chamada literatura de cordel, os folhetins dos jornais. Só que não se confundia com a outra literatura. O que acontece é que lhe foi dada uma dignidade que não tem.
A crítica perdeu a capacidade de perceber a diferença entre literatura e entretenimento?
É a ideia de tempo e de trabalho. Para ler um livro, não uma coisa qualquer, é preciso tempo, e dá trabalho. O leitor tem de entrar num mundo que não conhece. O que acontece é que muitos dos críticos impõem àquilo que lêem um esquema prévio e não buscam o que há ali de novo. Aquilo que não está de acordo com o esquema que já trazem não serve. Não têm a inocência da abordagem, e é preciso essa inocência. Nós vivemos confrontados com uma linguagem que esqueceu uma quantidade enorme de nomes. Lembro-me que antes de ter deixado de dar aulas [de Filosofia] deixou de se falar em bibliotecas e começou a ouvir-se falar em centros de recursos. Agora já não há cegos, há deficientes visuais. Já não há surdos, há deficientes auditivos.

Essa forma de suavizar a linguagem, de lhe fazer perder propriedades, surge porque se entende que há um certa violência em chamar a alguém cego ou surdo?
Mas porquê? Onde é que está a violência? Cego não acarreta nenhuma deficiência, é um estado. Eu sou cego do mesmo modo que tenho um metro e setenta e cinco. Mas se sou deficiente visual falta-me alguma coisa. Isso é que é agressivo.
O que é que a suspeita introduz que lhe parece que a tornou tão estruturante na forma como vivemos em comunidade?
A suspeita introduz no outro o medo de ser. E ao mesmo tempo introduz uma espécie de claridade maligna sobre o outro. Voltamos à expressão "deficiente visual" contra "cego". Quando se afasta o cego e se coloca o deficiente visual, ilumina-se de uma maneira impiedosa o outro. É uma espécie de maldade. E se eu disser: sou cego (ainda não sou, mas para lá caminho), qual é o problema? Mas se disser que sou deficiente há uma menorização do meu próprio estatuto como pessoa. As palavras, mais uma vez, estão carregadas de malignidade.

Na sua escrita há um exercício muito hábil de traduzir pela linguagem uma relação física com o mundo.
Aquilo que me fascina na linguagem é a possibilidade que há de a tornar física, é a fisicalidade que é possível retirar da linguagem. Nos nomes que temos esquecido encontra-se muitas vezes essa capacidade de fisicalizar a linguagem. Isto está muito ligado ao olhar. Se vejo um animal morto, aquilo que vejo é uma transparência - vêem-se os ossos debaixo da pele como se fosse o desenho do próprio ser, e como se fosse o futuro desse ser. É essa transparência que só o olhar encontra. É interessante porque eu vejo muito mal e sempre vi mal, e no entanto olhar é para mim a coisa mais fascinante, porque o mundo só pelos olhos é que me entra. A minha escrita nasce de uma percepção. Posso dar exemplo do livro sobre os anões, "A Boca na Cinza". Uma vez estava em Aveiro, entre amigos, a jantar, e vi um casal na mesa do lado (na altura ainda via alguma coisa), reparei que a rapariga afastou o cigarro da boca e senti que havia qualquer coisa de estranho. Eram dois anões, os donos do restaurante, estavam ali a jantar e tinham uma quantidade de listas telefónicas sobre as cadeiras. Ela e o irmão, pensei. Muito bonita, ela: um cabelo lindíssimo. Quando acabaram de jantar vieram dois empregados e carregaram-nos ao colo para fora do restaurante. Foi desse episódio que depois nasceu o livro. Vivo fascinado pela realidade.

Como é que se relaciona com os seus livros depois de os publicar?
Geralmente não lhes volto a pegar.

O Rui está longe de ser um dos autores portugueses mais divulgados ou traduzidos.
Nunca fui traduzido. Aliás, só para croata. E um conto na Alemanha.
Aquilo a que se chama literatura parece andar atrás do que deixa as pessoas entusiasmadas...
As pessoas querem um passatempo. Esse tipo de passatempo a minha escrita não fornece. Qualquer escrita que resista a essa apropriação imediata está condenada a viver à margem.
Causa-lhe alguma perplexidade isto?
Ela até poderia ser traduzida e depois não a lerem, que é o mais natural. Só me causa perplexidade que nem sequer exista essa tentativa. Mas não é coisa que me preocupe muito.

Considera-se um dos nossos escritores mais portugueses?
Sim. Eu que não sou nacionalista, digo- -lhe que sim. Não é que a minha pátria seja a língua portuguesa, mas é este enraizamento (infelizmente, para mim) aqui. E é isso que está sempre a emergir.

A sua escrita surge porque o Rui se incomoda, o mundo incomoda-o, a linguagem incomoda-o. Imagino que não pense no seu leitor, mas para si não faz sequer sentido vir para a literatura se não se põe como princípio incomodar-se?
Acho que a pessoa que não se incomoda não escreve, não pinta, não faz nada.

Mas pode ler e apreciar uma obra de arte?
Pode, se deixar que a incomodidade o apanhe. Se não se quiser incomodar não vai tirar um gosto disso. Penso que um dos grandes problemas foi que não se acrescentou a participação à compreensão que se faz do mundo. Não basta compreender o terror, é preciso participar dele. É preciso ter medo, não basta compreender o medo. O peso da modernidade ainda é tão forte que o acto de participação está excluído. E então constroem--se teorias e teorias, mas a essas teorias falta uma coisa que é participar. É essa dimensão biológica que falta à compreensão.

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segunda-feira, 28 de abril de 2014

RAIN FALLING



"Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre a mesa;
Vem comigo por certas ruas semi-desertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hóteis baratos de uma noite
E restaurantes com serradura e conchas de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes «Qual será?»
Vem lá comigo fazer a tal visita."

"A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock"
T. S. Eliot 

Vasco Graça Moura, o escritor que não acreditava na inspiração


Vasco Graça Moura fotografado no seu gabinete, no CCB, em 2012
Vasco Graça Moura fotografado no seu gabinete, no CCB, em 2012
Tiago Miranda

"Não acredito na inspiração e vejo na escrita poética, basicamente, um exercício técnico, uma aplicação de capacidades oficinais"
Óscar Lopes viu-o como o caso típico do poeta de larga informação cultural. Ao longo de cinco décadas de labor literário, que serão assinaladas no próximo dia 31 com um colóquio na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, VGM, como também gosta de se anunciar, não se cansou de fazer a demonstração prática desse saber raro, esparramado numa longa obra poética, algumas passagens pelo romance, um corpus feito de risco na área da tradução e uma vocação ensaística cultivada com a paixão de quem não teme a polémica. Uma deslocação do poeta à Madeira, associada à greve dos controladores aéreos, obrigou a que a entrevista tivesse de se efetuar com recurso ao correio eletrónico.
Muito antes de atingir estes 50 anos de vida literária, escreveu um "Testamento VGM". O que é que pretendeu?
Eu tinha traduzido havia pouco os "Testamentos" de François Villon, com toda a sua carga lúdica e irónica. Villon começa a falar dos seus trinta anos ("en l'an trentième de mon âge"). Eu tinha acabado de fazer sessenta e isso deu-me o começo, falando "no ano em que sou duplo trintão". Pretendi uma espécie de divertimento sério...
Quais são os cinco momentos mais marcantes desta sua carreira de cinquenta anos?
A publicação do primeiro livro, "Modo Mudando" (1963); depois, "A Sombra das Figuras" (1985); "Uma Carta no Inverno" (1997); a do primeiro romance, "Quatro Últimas Canções" (1987) e a de "Por Detrás da Magnólia" (2004). Pondo as coisas noutros termos: o prémio Pessoa (1995), o grande prémio de poesia da APE (1998); o prémio internacional de Struga (2004); o grande prémio de romance da APE (2204); o Prix Max Jacob étranger (2007).
Carlos Fuentes dizia que nunca teve medos literários. Acompanha-o?
Medo literário, só o de as coisas saírem mal quando as escrevemos. Mas é um medo superável pelo exercício da autocrítica.
Nunca o angustiou o poder atemorizador da folha em branco?
Não tenho medo nenhum da folha em branco. Nunca me angustiou que ela, eventualmente, tivesse de permanecer nesse estado.
Memoriza poemas, seus ou alheios?
Não. Mas houve tempos em que sabia de cor fragmentos mais ou menos longos de Dante, Lorca, Shakespeare...
Quando é que começou a escrever?
Comecei pelos seis anos, sem nenhuma razão especial que não fosse a de gostar de o fazer.
Porque é que cursou direito em vez de Belas Artes?
Direito correspondia a uma tradição familiar (que hoje leva mais de um século). Belas Artes implicava um certo tipo de risco, para que eu me sentia preparado, mas achando que não tinha qualidades que fizessem de mim um artista plástico mesmo bom. Na hesitação, ganhou a hipótese de ter uma vida mais ou menos burguesa e confortável.
Tinha algum herói? Pretendia imitar alguém?
A princípio, os meus heróis eram personagens de ficção: Gonçalo Mendes Ramires e Julien Sorel muito mais do que Fradique Mendes. Mais tarde, o meu herói na aventura intelectual, interdisciplinar e criadora passou a ser Jorge de Sena.
A ficção nunca ocupou um lugar muito proeminente na sua obra, Ainda um dia teremos a sua "Montanha Mágica"?
A ficção começou mais tarde, numa fase da vida em que eu tinha menos tempo para ela e já me dispersava por outras preocupações. Não tenciono escrever a minha "Montanha Mágica". Ainda se eu conseguisse, como stendhaliano impenitente, escrever o meu "Le Rouge et le Noir"... Mas, além de ser precisa a capacidade de o fazer, acontece que eu nunca elaboro programas nem projectos com antecedência.
Qual o lugar da inspiração no seu trabalho poético?
Não acredito na inspiração. Vejo na escrita poética fundamentalmente um exercício técnico, uma aplicação de capacidades oficinais.
Há um intenso pendor metafórico em muita da sua poesia, contrabalançado, como já assinalou, por um lado cada vez mais prosaico. Navega bem nessa aparente contradição?
A dimensão prosaica e a propensão metafórica são usadas segundo aquilo que pretendo dizer e combinam-se sem problema. O Montale falava de uma poesia que tende para a prosa e se detém no limite, antes de lá chegar. Isso acontece-me com alguma frequência, muito embora o lado aparentemente prosaico seja susceptível de uma dicção e de acentuações rítmicas que fazem toda a diferença. Convivo muito bem com essa dualidade, porque ela não implica qualquer espécie de cisão do eu poético. É antes instrumental e criticamente controlada.
O que o atrai no ensaio?
O ensaio é uma maneira de abordar um determinado objecto numa flutuação entre certezas e incertezas, hipóteses, contradições e derivas, obscuridades, intuições e clarificações. O seu encontro está em ser sempre uma forma de problematização e nunca se propor como aquisição definitiva do conhecimento.
Gosta de viajar ao seu próprio passado literário, relendo-se?
Nem por isso. Só me releio em tempos de revisão de provas.
Corrige muito?
Não costumo embevecer-me na contemplação daquilo que escrevi. Não tenho narcisismos de autor. Uma vez escrito, é raro voltar a pegar num texto, a não ser quando se trata de reeditá-lo e não posso baldar-me à correcção das provas. Enquanto escrevo, sim, corrijo muito, mas disso não ficam propriamente vestígios porque o faço quase sempre em computador.
Costuma ler o que escrevem sobre si?
Se se trata de textos críticos que me chegam à mão, claro que sim. Acho importante conhecer a opinião alheia.
Como é que escreve?
Escrevo tudo, mas mesmo tudo, no computador, poesia, ficção, ensaio, traduções, artigos. À mão, na prática, já só sei assinar omeu nome...
Convive bem com as novas tecnologias?
Sinto-me mais ou menos analfabeto. Mas o computador é uma espécie de máquina de escrever qualificada que proporciona uma rapidez e uma eficácia inestimáveis no que respeita às correcções e às montagens.
Tem algum ritual de escrita?
Nenhuma espécie de ritual. Escrevo quando me apetece fazê-lo, em qualquer sítio e a qualquer hora, sem que o que se passa à minha volta me perturbe.
Tiago MirandaVasco Graça Moura fotografado no CCB, em 2012
Sente-se um traidor na sua qualidade de impenitente tradutor?
'Traidor', não é propriamente o termo. Sinto-me um fotógrafo a preto e branco de uma realidade que tem algumas cores. A falta dessas cores não deve prejudicar a reconhecibilidade, nem a manutenção de, pelo menos, algumas das qualidades do original.
Qual foi a mais difícil das suas traduções?
As duas mais difíceis, no plano da poesia, terão sido a "Divina Comédia" e os "Sonetos" de Walter Benjamin; no tocante ao teatro, sem dúvida que foi o "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand. Mas qualquer das outras traduções que fiz foi bastante difícil. O desafio torna-se estimulante por isso mesmo.
Qual foi o livro traduzido do qual muito lamentou não ser o autor?
Essa é uma pergunta terrível e capciosa, porque eu gostava de ter sido autor em primeira mão de todos os livros que traduzi...
Já traduziu do espanhol, francês, inglês, alemão, latim, italiano. Porque é que ainda não se interessou pelo grego?
Infelizmente não sei grego. Quem me dera! E mesmo no que toca ao latim, sei muito pouco. Traduzi umas 18 odes de Horácio, mas com recurso a muitas ajudas interpretativas.
Hoje, mais do que nunca, faz sentido voltar aos gregos?
Para nós, europeus, os gregos são o princípio de tudo! O problema é que eles agora, no plano político, ameaçam acarretar o fim do mundo em que vivemos.
Fez um grande investimento pessoal na tradução dos grandes clássicos...
Os clássicos são quem melhor nos explica. Os grandes, e os que eu consegui traduzir incluem-se nesse grupo, são marcos da civilização e da cultura europeias. Implicam-nos e explicam-nos, como diria a Sophia.
Tem uma relação de posse em relação à língua?
Não sou dono da língua, mas um entre muitos milhões de possuidores dela.
Porque é que tanto batalha contra o novo Acordo Ortográfico?
O Acordo é uma barbaridade, feita inconsiderada e precipitadamente, mantida por obstinação e teimosia, e conducente a um resultado exactamente oposto ao pretendido.
Não lhe encontra nenhuma virtude?
Encontro duas: a de não estar em vigor e a de não poder ser aplicado, nem sequer tecnicamente.
Não é um exagero afirmar que o AO é "um crime contra a língua portuguesa"?
Para mim, não há exagero nenhum nisso. É um crime e uma torpeza.
Houve escassa reflexão sobre o novo AO por parte dos decisores políticos?
Tão pouca que nenhum desses decisores se atreveu ainda a rebater o fundo dos argumentos que foram apresentados contra ele. Todos se circunscrevem à afirmação de que o AO deve ser aplicado "porque sim" e não passam disso. E hoje não têm coragem de reconhecer o beco sem saída em que se meteram.
Sairemos derrotados com a entrada em vigor do novo AO?
A derrota será a da própria língua portuguesa, na Europa, em África, na América Latina, nas outras partes do mundo.
A seu pedido, não será aplicado o AO nas suas respostas. É uma querela para a eternidade?
É natural que eu pretenda não ver brutalmente desfiguradas as minhas respostas e por isso insisto na ortografia vigente (não a do AO, porque ele não está em vigor). A querela não será para a eternidade, porque a posição tomada em Luanda, na conferência deministros da Educação, há cerca de um mês, vai levar forçosamente à revisão do acordo no sentido que tem sido defendido por todos os que se lhe opõem.
Lê em português do Brasil?
Aprecio desmedidamente um grande número de autores brasileiros. Nunca tive qualquer problema com o português do Brasil. Ninguém tem. É uma variante que enriquece a língua em geral. E não é a questão ortográfica que resolve diferenças importantes que, além da pronúncia, são lexicais e sintácticas.
O que mais gosta de ler?
Actualmente, privilegio textos de história e ensaios sobre temas artísticos e literários.
Lê vários livros ao mesmo tempo?
Tenho sempre uma série deles. Vou lendo, mais ao sabor dos impulsos de momento do que das obrigações. Por exemplo, coisas tão diferentes como "The Age of Anxiety", de W. H. Auden, um estudo sobre a poesia de Nabokov ou a "Correspondência" entre António José Saraiva e Luísa da Costa.
Quem foi o último escritor ou poeta a deixá-lo abismado?
Depois de Dante e Petrarca, acho que o Wordsworth de "The Prelude" me deixará sempre abismado.
Há, na sua vida de leitor, um livro que o marque de forma absoluta?
As "Rimas" de Camões e "O Livro de Cesário Verde" aproximam-se desse resultado.
Quem são os criadores, em qualquer domínio, que mais admira?
Bach e Mozart, Piero della Francesca e Picasso, Homero e Dante, Visconti e William Wyler... tantos outros...
Tiago MirandaVasco Graça Moura era presidente do CCB
Há em si alguma componente religiosa?
Praticamente nenhuma, embora eu tenha tido uma educação católica. Mas há em mim uma sensibilidade a elementos que marcam a nossa maneira de ser e que são de matriz religiosa naquilo em que o mais fundo do ser humano é implicado. Posso arrepiar--me com uma "Paixão" de Bach. Na música e na pintura, pelo menos, é impossível ignorá-los. E na literatura, quando se pensa nas redondilhas camonianas "Sôbolos rios que vão"...
Encontra alguma especial simbologia no facto de estar agora a presidir ao CCB?
É um sítio dos mais belos de Lisboa, pela monumentalidade, pela simbologia, pela paisagem a rasgar-se sobre o rio e pela luminosidade muito especial, a jogar-se entre o manuelino dos Jerónimos e a poderosa austeridade geométrica do Centro Cultural de Belém.Mas omeu imaginário sente-se à vontade em muitos outros territórios.
Consigo teremos um CCB com outras prioridades?
Comigo, espero que tenhamos o CCB possível num período de crise como o actual.
O poeta não se sente constrangido por ver um VGM militantemente apoiante de um Governo tão agarrado à ideia de empobrecimento do país?
Não foi este Governo que inventou o empobrecimento do país. A situação é terrível e Portugal foi empurrado para ela há já alguns anos. Não me considero um militante, mas alguém que tem de reconhecer os factos e a situação catastrófica a que eles levaram e que, por isso, tem de apoiar quem tem a coragem de enfrentá-la, custe o que custar.
O que o fascina em Cavaco Silva para tão continuadamente o apoiar?
Cavaco Silva é um político rigoroso e competente. Não é, nem quis nunca ser, um caudilho arrebatador das massas. É alguém que conhece profundamente a realidade política, económica e social e tem ideias assentes no saber, na experiência e na sensatez.
Foi 10 anos deputado europeu, quando parecia não haver limites para o otimismo europeu. Tudo se esfumou?
Esse optimismo ainda se vivia na altura do meu primeiro mandato (1999-2004), quando ainda estávamos na Europa dos 15. Depois, tem vindo a esvair-se, na Europa intergovernamentalizada dos 27, com o esquecimento do método comunitário, o progressivo esbatimento do papel da Comissão imposto pelos Estados-membros mais fortes a partir do Conselho e com o gigantismo inoperante do Parlamento Europeu.
A Europa perdeu o sentido da solidariedade?
Esse sentido parece estar cada vez mais distante de uma tradução prática que justifique a construção europeia, tal como ela era concebida até há pouco tempo. Oxalá eu me engane.
Foi Prémio Pessoa em 1995. Um prémio desta natureza leva a reequacionar alguma coisa.
Resolve problemas imediatos, dá-nos um prestígio assinalável, incute-nos um sentido de responsabilidade cultural, contribui para um aumento da auto-exigência a partir da sua atribuição.
Nasceu no Porto, onde regressa amiúde. Como vê agora a cidade?
O Porto ainda mantém uma aura poética em que a memória funciona paredes meias com a realidade, sem perda da sua carga mítica e afectiva. As pessoas mudaram pouco. Alguns lugares mudaram bastante. Mas, visto da margem sul do rio Douro, acho que ainda está lá tudo, na cor, no recorte do casario, na volumetria, na luz, na relação entre o granito e a água - tudo o que eu gosto de encontrar na minha cidade...
Qual é a memória mais longínqua da sua infância?
A existência de senhas de racionamento para certos géneros alimentícios.
Qual foi o dia mais importante da sua vida?
Dado o contexto em que estamos a falar, foi o dia 14 de Fevereiro de 1963, data em que me desloquei à Tipografia do Carvalhido para recolher a edição do meu primeiro livro, "Modo Mudando".
Está com 70 anos. A idade tornou-o mais sábio?
Sem dúvida. Com a idade aprende-se a simular melhor a juventude.
Gostaria de terminar com Camões. É, para si, o expoente máximo da nossa criação literária?
É. Tanto o Camões lírico, como o Camões épico. Nestes tempos em que as grandes obras do espírito humano vão sendo esquecidas, convém ter presente um poeta em cuja lírica a razão e a emoção vão sendo vividas e se exprimem num angustiado sentido das contradições do ser humano, e cujo canto épico não se limita ao feito histórico dos descobrimentos: é-o também do desvendamento e do conhecimento do mundo pelo Homem.

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