segunda-feira, 15 de março de 2010

O Tango

Onde estarão? Pergunta a elegia
Sobre os que já não são, como se houvesse
Uma região onde o Ontem pudesse
Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.

Onde estará (repito) esse selvagem
Que ergueu, em tortuosas azinhagas
De terra ou em perdidas plagas,
A seita do punhal e da coragem?

Onde estarão aqueles que passaram,
Deixando à epopeia um episódio,
Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,
Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Procuro-os na lenda, na apagada
Brasa que, como uma indecisa rosa,
Conserva dessa chusma valorosa
De Corrales e Balvanera um nada.

Que escuras azinhagas ou que ermo
Do outro mundo habitará a dura
Sombra daquele que era sombra escura,
Muranã, essa faca de Palermo?

E esse Iberra (tenham dele piedade
Os santos) que na ponte duma via,
Matou o irmão, Ñato, que devia
Mais mortes que ele, ficando em igualdade?

Uma mitologia de punhais
No esquecimento aos poucos se desgasta.
E dispersou-se uma canção de gesta
Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa
Dos seus restos totais conservadores;
Aí estão os soberbos matadores
E o peso da adaga silenciosa.

Embora a adaga hostil ou essa adaga,
O tempo, os dispersassem pelos lodos,
Hoje, p'ra além do tempo e da aziaga
Morte, no tango vivem eles todos.

Na música prosseguem, na mensagem
Das cordas da viola trabalhosa,
Que tece na toada venturosa
A festa, a inocência da coragem.

Vejo a roda amarela circular
Com leões e cavalos, oiço o eco
Desses tangos de Arolas e de Greco
Que vi bailar no meio da vereda,

Num instante que emerge hoje isolado,
Sem antes nem depois, contra o olvido,
E que tem o sabor do que, perdido,
Perdido está mas foi recuperado.

Os acordes conservam velhas cousas:
Ou a parreira ou o pátio ancestral.
(E por trás das paredes receosas
O Sul tem uma viola, um punhal.)

O tango, essa rajada, diabrura,
Os trabalhosos anos desafia;
Feito de pó e tempo, o homem dura
Menos que a leviana melodia,

Que é tempo somente. O tango cria
Um passado irreal, real embora.
Recordação que não pôde ir-se embora
Morta na luta, algures na periferia.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.43-47

Daqui
"The girl and the woman, in their new, their own unfolding, will but in passing be imitators of masculine ways, good and bad, and repeaters of masculine professions. After the uncertainty of such transition it will become apparent that women were only going through the profusion and the vicissitude of those (often ridiculous) disguises in order to cleanse their most characteristic nature of the distorting influences of the other sex...

This humanity of woman, borne its full time in suffering and humiliation, will come to light when she will have stripped off the conventions of mere femininity in the mutations of her outward status...

Some day there will be girls and women whose name will no longer signify merely an opposite of the masculine, but something in itself, something that makes one think, not of any complement and limit, but only of life and existence: the feminine human being."
Rainer Maria Rilke

sábado, 13 de março de 2010

Alice in wonderland

Limites

Destas ruas que afundam o poente
Uma (mas qual?) já tenho percorrido
Pela última vez, indiferente
E sem adivinhá-lo, submetido

A Quem prefixa omnipotentes normas
E uma secreta e rígida medida
Às sombras e aos sonhos e às formas
Que destecem e tecem esta vida.

Se para tudo há um termo e há medida,
Última vez e nunca mais e olvido,
Nesta casa de que pessoa querida
Nos despedimos sem ter sabido?

A noite cessa p'ra lá da vidraça
E da pilha dos livros que truncada
Sombra pela indecisa mesa espaça
Há-de havê-los dos quais não lemos nada.

No Sul ao menos um portão arruinado
Existe com jarrões de alvenaria
E nopais dentro, que me está vedado
Como se fosse uma litografia.

Fechaste alguma porta pela certa
E para sempre. Um espelho em vão te aguarda.
Julgavas a encruzilhada aberta
E Jano quadrifonte está de guarda.

Entre as tuas memórias uma existe
Que sem remédio se veio a perder;
Àquela fonte não te hão-de ver
Descer o branco sol, a lua triste.

Não volta a tua voz a quanto o persa
Disse em língua de aves e de rosas,
Quando ao sol-pôr, perante a luz dispersa,
Quiseres dizer inolvidáveis cousas.

E o incessante Ródano e o lago,
Esse ontem, sobre o qual hoje me inclino,
Tão perdido estará como Cartago,
Sepulta em fogo e sal pelo latino?

Parece-me na alva que soou
Vivo rumor de gente. Assim vos vais,
(Foi tudo quem me quis e me olvidou)
Espaço e tempo e Borges já deixais.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.31-33

domingo, 7 de março de 2010

30 / Mãos

Ai, tuas mãos carregadas de rosas! São mais puras
tuas mãos do que as rosas. E entre as folhas brancas,
surgem como se fossem estilhaços de estrelas,
asas de mariposas alvas, sedas cândidas.

Caíram-te da Lua? Ou acaso brincaram
numa Primavera celestial? São da alma?
...Têm vago esplendor de lírios de outro mundo;
deslumbram o que sonham, refrescam o que cantam.

Minha fronte serena-se, como um céu vespertino,
quando tu com tuas mãos entre suas nuvens andas;
se as beijo, a púrpura de brasa desta boca
empalidece do seu brancor de pedra de água.

Tuas mãos entre sonhos! Atravessam, quais pombas
de fogo branco, minhas visões turbadas,
e, na aurora, abrem-me, como com luz de ti,
a claridade suave do oriente de prata.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.53/54

sábado, 6 de março de 2010

13

A lua dourava o rio
- tão fresco da magrugada! -
Pelo mar vinham as ondas
tingidas da luz da alva.

O campo débil e triste
acendia-se. Ficava
o canto gasto de um grilo,
a queixa escura de uma água.

Fugia o vento à sua gruta,
o horror à sua cabana;
no verde dos pinheirais
entreabriam-se as asas.

Iam morrendo as estrelas,
roseava-se a montanha;
além no poço do horto,
uma andorinha cantava.

Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.39

Elegia V - Retrato Dele

Aqui está, toma o meu retrato; embora de ti me despeça
O teu no meu coração, onde habita a minha alma, habitará.
É como eu agora, mas se eu morrer, será mais,
Quando formos ambos sombras,do que era antes.
Quando eu voltar gasto das intempéries, as mãos
Talvez rasgadas pelos remos rudes, ou curtidas dos raios do Sol
A minha face e o peito de silício, e a cabeça semeada
Com os eczemas dos cuidados das tempestades súbitas,
O corpo num saco de ossos, quebrado por dentro,
E as manchas azuis da pólvora espalhadas na pele;
Se rivais loucos te acusarem de ter amado um homem
Tão imundo e rude como, ah! então poderei parecer,
Isto deverá mostrar o que eu era, e tu deverás dizer,
Será que as dores dele me atingem? Arruínam o meu valor?
Ou atingem-lhe a mente pensante, e ele agora
Amará menos o que tanto gostava de ver?
Aquilo que foi nele belo e delicado,
Era apenas o leite no estado infantil do amor
O alimentava; o qual agora cresceu forte o bastante
Para se alimentar do que, a gostos desusados, parece rude.



John Donne in Elegias Amorosas. Edição Bilingue. Trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim, 1997

Elegia I - CIÚME

Mulher carinhosa, que verteu marido morto desejas
E de seus grandes ciúmes ainda te queixas.
Se inchado de veneno jazesse no seu último leito,
O corpo coberto por uma crosta cauterizada,
Aspirando o ar, tão rouco e rápido, como pode
Cravejar o mais ágil músico;
Com repugnante vomitado, pronto a expelir
A alma para fora de um Inferno, adentro de novo,
Feito surdo pelos urros uivantes dos parentes pobres
A implorar, com poucas e falsas lágrimas, grandes legados,
Não chorarias, mas alegre e prazenteira estarias
Como um escravo, que amanhã fosse libertado.
Porém tu choras, quando o vês engolir avidamente
A sua própria morte, o ciúme que envenena o coração.
Oh, agradece-lhe muito, ele é bem-educado,
Pois suspeitando, amavelmente nos avisou
Que não devemos, como usávamos, troçar abertamente
Da sua deformidade com enigmas de escárnio;
Nem estando juntos à sua mesa sentados,
Com palavras, toques, ou olhares de viés, adulterar;
Nem quando ele, inchado e satisfeito pela comezaina
Se senta, e ressona, enjaulando-se na cadeira de verga,
Deveremos nós outra vez usurpar-lhe a cama,
Nem beijarmo-nos e brincar na casa dele, como dantes.
Agora vejo grandes perigos; porque aquele é
O seu reino, o seu castelo, a sua diocese.
Mas - como os homens invejosos que insultariam
O seu Príncipe, ou lhe cunhariam o ouro, para outro país
A si próprios se exilam, e aí o fazem - ,
Se brincarmos noutra casa, que teremos a temer?
Ali zombaremos dos comportamentos caseiros,
Das suas intrigas cegas, e espiões a soldo,
Como o fazem os habitantes da margem direita do Tamisa
Ao Mayor de Londres, ou os alemães ao orgulho do Papa.


John Donne in Elegias Amorosas. Edição Bilingue. Trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim, 1997

quinta-feira, 4 de março de 2010

Os murmúrios da floresta

Enfim, um belo dia Romão viu-se casado. Trouxe a sua jovem esposa para a cabana da floresta. Nos primeiros dias não fez senão ralhar com ela, atirando-lhe ao rosto as vergastadas que tinha apanhado por sua causa.
-Não vale a pena martirizarem assim por ti um bom cristão.
Quando voltava da floresta, começava a querer expulsá-la de casa.
-Vai-te. Não quero mulheres em minha casa. Não gosto de dormir com mulheres, porque cheiram mal.
Dizia ele isto.
Mas, depois, foi-se acostumando a pouco e pouco. Oxana arrumava-lhe a casa, varria, lavava, tudo estava muito limpo e arranjado. Romão sentia-se contente e já se ria. Não só fez as pazes, como começou a gostar dela.
Palavra de honra, até ele mesmo se admirava!
Devo dar graças ao senhor, que me ensinou a ser razoável - dizia ele depois. Meu Deus, que parvo que eu era! Apanhar tantas vergastadas, para quê?! Agora vejo bem que fazia mal, recusando-me a casar. Estou muito contente com Oxana, mesmo muito contente.
Passaram-se as semanas e os meses. Um dia, reparei que Oxana se deitou num banco e começou a gemer. Durante a noite piorou. No dia seguinte, ouvi, com grande surpresa minha, o choro de uma criança.
«Toma! Há um menino cá em casa, disse eu para comigo. E não me enganava.
O menino não viveu muito tempo: apenas até à noite. Quando anoiteceu, já se não ouvia. Oxana pôs-se a chorar. Romão disse-lhe:
-Pronto, acabou-se. Já não temos menino. Não vale a pena chamar o pope; nós próprios o enterraremos debaixo de um pinheiro.
Romão atreveu-se a dizer isto. E não só o disse, como o fez: - abriu um buraco e enterrou o menino. Vês aquele velho tronco, acolá? São os restos de um pinheiro fulminado por um raio. Foi ali precisamente que Romão enterrou o menino. Ouve o que te vou dizer, meu rapaz: quando o sol se põe e a primeira estrela aparece no céu, um passarinho voa por cima desse sítio, soltando gritos de aflição. O coração despedaça-se-me ao ouvi-lo. O passarinho é a alma do menino que foi enterrado sem os Sacramentos, e suplica que lhe ponham uma cruz. Disseram-me que só um sábio que conheça os livros santos poderá salvar essa alma penada.
Oxana esteve muito tempo doente. Logo que melhorou um bocado, começou a passear horas inteiras sobre a campa do filho. O que ela chorava, meu Deus! Os seus lamentos ouviam-se em toda a floresta. A pobre não se podia consolar.
A Romão era-lhe indiferente a morte da criança; mas tinha dó de Oxana.
Ao vê-la chorar, dizia:
-Cala-te, minha estúpida. Não há de que chorar. Aquele menino morreu; mas pode ser que tenhamos outros, e até talvez melhores do que ele. Porque pode ser que o menino morte não fosse meu...Não sei nada, mas as pessoas murmuram...E o novo com certeza que será meu.

Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp. 104/105

terça-feira, 2 de março de 2010

BORGES E EU

É ao outro, a Borges, que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, a olhar o arco de um alpendre e o guarda-vento; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num grupo de professores ou num dicionário biográfico. Gostos dos relógios de areia, dos mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o outro compartilha dessas preferências, mas de um modo vaidoso, que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que as nossas relações são hostis; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa tecer a sua literatura e essa literatura justifica-me. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar,talvez porque o que é bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, mas sim da linguagem ou da tradição. Além do mais, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante meu poderá sobreviver no outro. A pouco e pouco vou cedendo-lhe tudo, embora não desconheça o seu perverso costume de falsear e de magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra quer eternamente ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros que em muitos outros ou que no laborioso zangarreio de uma viola. Há anos procurei libertar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idealizar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e perco tudo e tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.

Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.99

Nirvana: Paper Cuts

O murmúrio da floresta tornou-se mais forte. O velho levantou a cabeça e escutou.
-O furacão aproxima-se, diz ele. Conheço-o bem. Quando ele começa a rosnar, a puxar pelos pinheiros, a arrancá-los da terra, é uma coisa que faz calafrios. É o demónio da floresta que se enfurece - acrescentou ele, mais baixo.
-Como é que o sabes, avô?
-Ora essa, sei-o muito bem! Compreendo a linguagem das árvores. Vês tu? As árvores também têm medo. O álamo alpino, por exemplo, essa árvore maldita, está sempre a gemer. Mesmo quando não há vento, treme. O pinheiro também. Quando está bom tempo, canta docemente; mas logo que o vento começa a soprar, põe-se a gemer de angústia. Escuta. Eu vejo mal, mas tenho bom ouvido. Agora é a azinheira que começa a queixar-se. O demónio da floresta ataca as azinheiras. É sempre assim antes do furacão.


Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.98

Alentejo: entardecer invernal


- Bons dias, avô. Não está ninguém em casa?
- Eh! - e o velho fez um gesto negativo com a cabeça. Nem Zakar nem Máximo cá estão. Motria também partiu para a floresta, em busca da vaca. A vaca, provavelmente, extraviou-se. Talvez tenha sido devorada pelos ursos...Não, não está cá ninguém.
-Não faz mal, esperarei; e, enquanto espero, faço-lhe companhia.
-Como queiras.
Enquanto prendo o cavalo a uma azinheira, o velho olha-me com os seus olhos débeis e apagados. É muito, muito velho. Não vê quase nada, e as suas mãos são trémulas.
-Quem és tu, meu rapaz? -pergunta-me ele, depois de eu me ter sentado ao seu lado.
De cada vez que apareço faz idêntica pergunta.
-Ah! Agora caio em mim. É verdade, já me recordo, diz ele, contente, enquanto vai consertando uma velha bota rota - A minha velha cabeça já não conserva memória de nada. É como um crivo: dos que morreram há muito, recordo-me bem, mesmo muito bem; mas da gente nova esqueço-me sempre. Já se vê, como vivo neste mundo há tanto tempo...
-Vive nele assim há tanto tempo?
-Vamos, vamos, que há bastante. Já cá andava quando os franceses aqui vieram para batalhar com o nosso imperador.
-Então já tem visto muito, e já pode contar muita coisa.
O velho olha para mim com estranheza.
-Eu? Que tenho eu visto? Apenas a floresta, sempre rumorosa, seja de noite ou de dia, seja de inverno ou de verão. Tenho passado aqui toda a minha vida com estas árvores, e não tenho dado conta disso. Estou quase à hora da morte; mas às vezes, quando começo a pensar, pergunto a mim mesmo se vivi verdadeiramente ou não. Talvez nunca tenha vivido...


Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.96/97

segunda-feira, 1 de março de 2010

«Por agora, pode voltar para o seu castelo, que é como quem diz: para o silêncio.»




Tasin in Nas Garras da Morte. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.77

Memórias De Um Louco

Levai-me para longe deste mundo! Avante Avante! Que nada se veja...
Já não vejo diante de mim o céu formoso. Uma estrela brilha ao longe. Sob a lua, passam bosques com as suas alamedas umbrosas, debaixo de uma neblina azulada. Dum lado, o mar; do outro, a Itália...
Eis as cabanas russas. É a minha casa que se vê à distância? Não é a minha mãi que está à janela? Mãi, mãi! Salva o teu pobre filho. Derrama uma lágrima sobre a sua pobre cabeça doente...Tu vês como o martirizam? Aperta ao teu peito o pobre órfão. Não há no mundo lugar para ele; expulsam-no de toda a parte. _ Mamã, mamã! Tem piedade do teu pobre filho doente...
Sabem que o Bey da Argélia tem uma verruga por baixo do nariz?...


Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.50

domingo, 28 de fevereiro de 2010


Memórias De Um Louco

Não me lembro da data. Não havia
data. Não havia mês. Só havia o
diabo!


Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.45

O Grande Inquisidor

O homem, acredita, é mais fraco e mais vil do que tu pensavas. Acaso pode ele fazer o que tu fizeste? Estima-lo demais e tens por ele muito pouca piedade. Exigiste-lhe demasiado, tu que o amas mais que a ti próprio. Devias amá-lo menos e exigir-lhe menos. Ele é fraco e cobarde. O facto de hoje se sublevar, por toda a parte, contra a nossa autoridade, e de se orgulhar com isso, nada significa. As suas bravatas são filhas de uma vaidade de caloiros. Os homens são sempre umas criancinhas: - revoltam-se contra o professor, abandonam a aula; mas a revolta acabará depressa, custar-lhes-à cara.


Dostoiévski in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.26

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Por tão pouco
saí das minhas cinzas o que sou:
O Homem do Bem e do Mal
que nunca pôde valer
ao espelho descarnado
que está no chão desenhado
a apodrecer



Miguel Torga in O Outro livro de Job, 5ª edição revista. Coimbra, 1986., pp.32
'Depressa se vai a primavera
Choram os pássaros e há lágrimas
nos olhos dos peixes' (pp.31)


'As cigarras cantam
sem saberem que é a morte
que as escuta' (pp.40)


'Crepúsculo:
as ervas parecem seguir
os rebanhos que recolhem. (pp.48)



Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética.
Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Poema Conjectural

O doutor Francisco Laprida, assassinado no dia
22 de Setembro de 1829 pelos «montoneros» de
Aldao, pensa antes de morrer:
Zumbem as balas pela tarde última
Há vento e há cinzas sobre o vento,
dispersam-se o dia e a batalha
disforme, e a vitória é dos outros.
Triunfam os bárbaros, os gaúchos.
Eu, que estudei as leis e mais os cânones,
eu, Francisco Narciso de Laprida,
cuja voz declarou a independência
destas cruéis províncias, derrotado,
de sangue e de suor manchado o rosto,
sem esperança nem medo e perdido,
vou para Sul por arrabaldes últimos.
Como aquele capitão do Purgatórioque,
debandando a pé e ensanguentado
o plaino, a morte fez cegar, tombar
lá onde um rio obscuro perde o nome,
assim hei-de eu cair. Hoje é o termo.
A noite lateral de infindos pântanos
espia-me e demora-me. Oiço os cascos
da minha quente morte que me busca
com ginetes, com belfos e com lanças.
Eu que ansiei ser outro, ser um homem
de sentenças, de livros, de ditames,
sob o céu jazerei entre lameiros;
mas endeusa-me o peito inexplicável
um júbilo secreto. Entretanto enfim
o meu destino sul-americano.
A esta fatal tarde me levava
o labirinto múltiplo de passos
que meus dias teceram desde um dia
da meninice. Descobri por fim
a recôndita chave dos meus anos,
a sorte de Francisco de Laprida,
a letra que faltava, essa perfeita
forma que soube Deus desde o princípio.
No espelho desta noite recupero
o meu insuspeitado rosto eterno.
Vai-se fechar o círculo e aguardo.
Pisam meus pés a sombra dessas lanças
que me buscam. A mofa já da morte,
os ginetes, as crinas, os cavalos
adejam sobre mim...Já o primeiro
golpe me fende o peito, o duro ferro,
a faca interior sobre a garganta.
Jorge Luis Borges in Poemas Ecolhidos. Edição bilingue. Trad. e
selecção de Ruy Belo. Dom Quixote, 2003., pp.17/19

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

É então a nossa vida um sonho apenas
tenuemente visto numa luz dourada
através do irresistível e negro curso do Tempo?

Sobre a terra curvados por uma cruel mágoa
ou a rir em espectáculos de qualquer feira,
agitamo-nos ociosos de um lado para o outro.

O curto Dia do Homem passamo-lo apressadamente
e, do seu alegre meio-dia, não enviámos
sequer um rápido olhar para o fim silencioso.



Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003
Lewis Carroll, ao visitar um escultor seu amigo, encontrou uma criança e começou a mostrar-lhe as vantagens que ela teria se substituísse a sua cabeça por uma de mármore. Uma dessas vantagens era aliciante. Residia no facto de não ser necessário pentear-se. A criança mostrou-se efectivamente convencida, acolhendo da melhor maneira aquela justificação.
(notas de Fernando Guimarães)
Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Prisoners:Claude Hankins


CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. Tu,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.


É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.



Paul Celan in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio.
Trad. João Barrento. Edição Bilingue. Edições Cotovia, Lisboa, 1998., pp.37

A Morte

Para Yvan Goll
A morte é uma flor que só se abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora de estação.
E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes
Deixar-me ser o caule forte da sua alegria.

Paul Celan in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio.
Trad. João Barrento. Edição Bilingue. Edições Cotovia, Lisboa, 1998., pp.15

Funkadelic: Maggot Brain

Sensação de vazio
Ao despedir-me colhi
uma espiga de trigo (pp.39)


Admirável aquele
cuja vida é um contínuo
relâmpago (pp.51)


Tendo adoecido em viagem
em sonhos vagueio agora
na planície deserta


Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética. Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986
Nós, que tanto nos amávamos, nunca tínhamos trocado uma palavra afectuosa.


Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego., pp.8

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Lava and Shore


Vem-me à lembrança, e choro este meu
pranto de crocodilo sincero...
Eu sou determinado, e Satanaz bem sabe
que não sei fazer o bem
e faço o mal que não quero...


Miguel Torga in O Outro livro de Job, 5ª edição revista. Coimbra, 1986., pp.52
Aquele que faz injustiça, faça-a ainda:
e aquele que está sujo, suje-se ainda:
e aquele que é justo, justifique-se ainda:
e aquele que é santo, santifique-se ainda.

Apocalipse
Cultivemos a planta
do silêncio: negro-musgo.
Dizer o nome
é perturbar o sono...


...a memória
a pulsação que dói...


Yvette K. Centeno, Entre Silêncios

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

'Uma simples palavra fez-me perceber que nada se modificou em mim no que a isto respeita, que é e continuará a ser uma ferida: que a trago comigo, tão funda que nunca sarará; ao fim de vários anos há-de continuar a ser exactamente o que era no primeiro dia'.

Van Gogh

The good reputation, sleeping, 1938


Há, na obra de um autor, palavras obsessivas, repetitivas, que são mais reveladoras que todos os factos recolhidos pela paciência dos biógrafos. Eis algumas que aparecem em Rimbaud: éternité, infini, charité, solitude, angoisse, lumiére, aube, soleil, amour, beauté, inouî, pitié, démon, ange, ivresse, paradis, enfer, ennui...

Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.34
Para compreender toda a importância da Estação no Inferno de Rimbaud, que se prolongou por dezoito anos, é preciso ler as suas cartas. Grande parte deste período foi passado na Costa da Somália e alguns anos em Aden. Vejamos uma descrição desse inferno terreno, contida numa carta dirigida à mãe: 'Não se pode imaginar o lugar: não há uma árvore, nem sequer ressequida, não há um tufo de erva. Aden é a cratera de um vulcão extinto cheia de areia do mar. Apenas se vê a lava e areia por todo o lado, incapazes de produzir o mais pequeno vestígio de vegetação. Em volta, areias desérticas. Os lados da cratera do nosso vulcão extinto impedem o ar de entrar e somos assados como num forno de cal'.

Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.16/17
Hoje, o poeta é obrigado a renunciar à sua vocação porque se lhe evidenciou já o seu desespero, porque já reconheceu a sua incapacidade de comunicar. Tempo houve em que ser-se poeta era a mais elevada das vocações; hoje é a mais fútil. E é assim, não porque o mundo se tenha tornado imune à voz do poeta, mas porque ele próprio já não acredita na sua missão divina. Há mais de um século que os poetas andam a cantar fora de tom; chegámos finalmente ao ponto em que ninguém os consegue acompanhar. O berro da bomba continua a fazer sentido, mas os delírios do poeta parecem uma algaraviada. Parecem e são, se, dois biliões de pessoas que há no mundo, só alguns milhares fazem de conta que entendem o que um determinado poeta diz. O culto da arte chega ao fim no momento em que só existe um punhado de eleitos. Nesse momento já não se trata de arte, mas sim da linguagem cifrada duma sociedade secreta devotada à divulgação de um individualismo desprovido de sentido.
Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.38

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Para uma metáfora ter vida necessita de duas condições essenciais: forma e raio de acção.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende.
Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 131

domingo, 31 de janeiro de 2010

Bill Fay - Time Of The Last Persecution - 1971


I must stand by the side of the mountain
I must be where I know I must be
When you stand and face the gas masks and truncheons
You must know what it all really means

It is the time of the last persecution
And Caesar shall be raised
He will ask for his feet to be kissed by your sister
And your children will fear at his name

Do not avenge these deaths do not avenge them
You must know what it all really means
It is the time of the Anti-Christ know what I say
Make for your own secret place

And others will join you there
And you wait for the ships in the air
And you wait for a sign like a trumpet sounding
And you go out and walk to the Christ
And you go out and walk to the Christ

vídeo aqui

sábado, 30 de janeiro de 2010

Sabes que eu compreendo a carne mínima do mundo
Para poder expressá-lo.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 95 ;do poema Lua e Panorama dos Insectos (O poeta pede ajuda à Virgem).

David Lynch and Isabella Rossellini


Matei-a para não lhe dar um desgosto.


Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Ontem, até à hora dos pássaros ficavas comigo
e todos os falcões são agora corvos!

Marina Tsvetáieva in Poetas Russos. Trad. Manuel Seabra. Relógio D'Água Editores, 1995., pp. 141
Escorreguei e caí, por causa de uma casca de laranja. Estava muita gente. Desataram todos a rir. Principalmente a vendedeira do lugar, que me agradava. Levou com a pedra em cheio, mesmo entre os olhos: sempre tive boa pontaria. Caiu com as quatro patas para o ar, com a flor à mostra.
Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008 (pp.103)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010



Rita Nunes, 1997, curta-metragem Menos 9

Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava, empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era vulgar, o sítio era ordinário e a colher estava gasta, viscosa de tanto ser usada). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite dava voltas e mais voltas, com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu estava sentado mesmo em frente. O café estava à pinha. O homem continuava a mexer e a remexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se sentiu na obrigação de se explicar:
-O açúcar ainda não se desfez todo.
Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer metodicamente a beberragem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem descanso, e o ruído da colher na borda do vidro. Trum, trum, trum. Incessante, incessante, sem descanso, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E olhava para mim, sorrindo. Então puxei pela pistola e disparei.

Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008 (pp.24)

booktrailer dos 'Crimes Exemplares' de Max Aub




visto aqui
Quem pode dizer que não lhe caíram as asas? Acobardando-se até os virtuosos, que pretendem os que não alardeiam? Nunca estivemos tão perto desta terra que nos engolirá sem deixar da nossa passagem o mínimo rasto. Não deitemos as culpas para cima de ninguém; perdeu-se a semente, talvez devido ao mau tempo.

Max Aub Mohrenwitz, México, 1956
No ar deserto há uma dor de ausências
e nos meus olhos pessoas vestidas, sem nudez!


Frederico García Lorca in Anjo e Duende., (pp.77)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A Galinha (Conto para crianças malucas)

Havia uma menina que era idiota. Disse idiota. Mas ainda é pouco dizer idiota. Picava-lhe um mosquito e desatava a correr. Picava-lhe uma vespa e desatava a correr. Picava-lhe um morcego e desatava a correr.
Todas as galinhas temem as raposas. Mas esta galinha queria que elas a devorassem. E portanto a galinha era uma idiota. Não era uma galinha. Era uma idiota.
Nas noites de Inverno, a lua das aldeias dá grandes bofetadas às galinhas. Umas bofetadas que se ouvem nas ruas. Dá muita vontade de rir. Os padres nunca serão capazes de compreender o porquê destas bofetadas, mas Deus sim. E as galinhas também.
Todos vós precisais de saber que Deus é um grande monte VIVO. Tem uma pele de moscas, e por cima uma pele de vespas, e por cima uma pele de andorinhas, e por cima uma pele de lagartos, e por cima uma pele de lombrigas, e por cima uma pele de homens, e por cima uma pele de leopardos,e tudo. Tudo, estais a ver? Por conseguinte tudo, e além disso uma pele de galinhas. Era isto o que a nossa amiga não sabia.
Dá vontade de rir, repararmos como as galinhas são simpáticas! Todas têm crista. Todas têm cu. Todas põem ovos. O que dizeis a isto?
A galinha idiota odiava os ovos. Gostava de galos, é certo, como as mãos direitas das pessoas gostam das picadas das silvas ou da iniciação da alfinetada. Mas ela odiava o seu próprio ovo. No entanto, nada é mais bonito do que um ovo.
Recém-tirado das espigas, ainda quente, é a perfeição da boca, da pálpebra e do lóbulo da orelha. A face quente daquela que acaba de morrer. É o rosto. Não estais a compreender? Eu compreendo. Dizem-no os contos japoneses, e também o sabem algumas mulheres ignorantes.
Não quero defender a beleza sem defeito do ovo, mas como toda a gente louva a pulcritude do espelho e a alegria dos que se espojam na relva, bem está que eu defenda um ovo contra uma galinha idiota.
Vou dizê-lo: uma galinha amiga dos homens.
Uma noite, a lua estava a repartir bofetadas pelas galinhas. O mar e os telhados e as carvoeiras tinham uma luz idêntica. Uma luz onde o besouro teria sido atingido pelas flechas de toda a gente. Ninguém dormia. As galinhas não podiam mais. Tinham as cristas cheias de orvalho e os piolhos tocavam as suas campainhas eléctricas no intervalo das bofetadas.
Por fim um galo decidiu-se.
A galinha idiota defendia-se.
O galo dançou três vezes, mas os galos não sabem enfiar bem as agulhas.
Os sinos das torres tocaram porque tinham que tocar, e os canais de rega, e os corredores, e os que jogam golfe três vezes ficaram cor de amora e a tilintar. A luta começou.
Galo preparado. Galinha idiota. Galinha preparada. Galo idiota. Ambos preparados. Ambos idiotas. Galo preparado. Galinha idiota.
Lutavam. Lutavam. Lutavam. Toda a noite nisto. E dez. E vinte. E um ano. E dez. E sempre.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 52/53

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Goldfrapp: eat yourself




Eat yourself

If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
You could longer life
Seen it on this town

You went south on the train
She wore plastic boots for rain
And you crawl along exhausted
When you dream in tears, call on me

Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life

If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
If you don't eat yourself
You will explode instead

Cause I love and love you so
When I know you don't love me
You wanted life, stay alone
Get wicked, anymore

Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life

José Boldt: 'Leitura'


Degolação dos Inocentes


Tris trás. Zigue zague, rigue rague, milgue malgue. A pele era tão recente que saía íntegra. Crianças e nozes de casca recém-formada.
Os guerreiros tinham raízes milenárias e o céu cabeleiras embaladas pelo hálito dos anfíbios. Era preciso fechar as portas. Pepito. Manolito. Enriquito. Jaimito. Emilito.
Quando ficarem loucas, as mães hão-de querer construir uma fábrica de chapéus de pórfiro, mas com esta crueldade nunca poderão atenuar a ternura dos seus peitos derramados.
Os tapetes eram enrolados. O ferrão da abelha tornava possível o manejo de espada,
Era necessário o ranger de ossos e o rebentar dos açudes dos rios. Uma bacia e basta. Mas uma bacia que não se assume com o jacto interminável que há-de soar durante três dias.
Subiam às torres e desciam até aos búzios. Por fim, uma luz de clínica venceu a untosa luz do hospital. Já era possível operar com todas as garantias, Iodofórmio e violeta, algodão e prata de ouro mundo.Vão entrando! Há pessoas que se atiram das torres para os pátios e outras, desesperadas, que espetam tachas nos joelhos. A luz da manhã era cortante e o vento oleoso tornava possível a ferida menos esperada.
Jorgito. Alvarito. Guilhermito. Leopoldito. Julito. Joseíto. Luisito. Inocentes. O aço precisa de calores para criar as nebulosas, e lá vamos à incansável lâmina! É melhor ser medusa e flutuar, do que ser criança. Alegríssima degolação! Função lógica do sangue sem luz, que sangra as suas paredes.
Chegavam das ruas mais distantes. Todos os cães levavam um pezinho na boca. O pianista louca apanhava unhas rosadas para construir um piano sem emoção, e os rebanhos baliam com os pescoços partidos.
É preciso ter duzentos filhos e entregá-los à degolação. Só desta forma seria possível a autonomia do lírio silvestre.
Vinde! Vinde! Aqui está o meu filho tão macio, o meu filho de pescoço fácil. Poderás degolá-lo facilmente no patamar da escada.
Dizem que está a ser inventada a navalha eléctrica, para reanimar a operação.
Recordais-vos do rouxinol com as duas patas partidas? Estava entre os insectos criadores dos frémitos e das cuspidelas. Pontas de agulha. E teias de aranha sobre as constelações. Dá vontade de um verdadeiro riso pensarmos como a água está fria. Água fria nas areias, nos céus frios e nos dorsos de caimão. Aqui, nas ruas, corre o mais escondido, o mais saboroso, o que bate os dentes e faz empalidecer as unhas. Sangue. Com toda a força do seu g.
Se medirmos e estivermos cheios de piedade verdadeira, a degolação parecer-nos-á uma das grandes obras de misericórdia. Misericórdia do sangue cego que, seguindo a lei da sua natureza, quer desaguar no mar. Nem sequer houve uma voz. O chefe dos hebreus atravessou a praça para acalmar a multidão.
Às seis da tarde não restavam mais de seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas as feridas já estavam todas secas.
Já todo o sangue cristalizara quando as lanternas começaram a aparecer. Nunca haverá no mundo outra noite igual àquela. Noite de vidros e mãozinhas geladas.
Os seios enchiam-se de leito inútil.
O leite materno e a lua travaram a batalha dos mármores e lá deixava espetadas as suas últimas raízes enlouquecidas.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 38/40

sábado, 23 de janeiro de 2010

Atmosphere - Joy Division

História deste galo

«Na mesma manhã em que foi aprovado o projecto de abrir a Gran Vía, que tanto contribuiu para deformar o carácter dos actuais granadinos, don Alhambro morreu.
Quatro velas. Four candles.
Ninguém no seu enterro. Sim. As andorinhas. The Swallows. Uma pena.
A seguir ao enterro, o galo saiu pela janela e atirou-se ao perigo da rua e à má vida. Chegou a pedir esmola aos ingleses na Porta do Vinho, e fez-se amigo de dois anões que tocavam flauta e vendiam touros de doce. Um verdadeiro vadio. E depois desapareceu. » (pp.36)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

Fatalidade

O rosto que mereces está sempre noutro espelho.


José Mário Silva in Efeito Borboleta e outras histórias. Oficina do Livro, 2008

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Aia

«Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!...Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?
A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrada ao punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios de Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
-Salvei o meu príncipe - e agora vou dar de mamar ao meu filho!
E cravou o punhal no coração. (pp.162)

Eça de Queiroz in Contos. Edição «Livros do Brasil», Lisboa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

«Desenhado com lâmpadas eléctricas, não custava nada lermos no escuro: Estação de São Lázaro.
São Lázaro nasceu muito pálido. Deitava um cheiro a ovelha molhada. Quando lhe davam açoites, lançava pela boca torrões de açúcar. Ouvia os menores ruídos. Uma vez confessou à mãe que podia, pelas batidas, contar de madrugada todos os corações que havia na aldeia.» (pp.27)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

domingo, 17 de janeiro de 2010

Deep Purple - Shield

III Marânus, Eleonor e a Pastora

Vinda no brando zéfiro tremente,
Uma nuvem o sol escureceu.
E Eleonor, essa Deusa, novamente,
Diante de Marânus aparece.
Um crepúsculo terno diluía
A nitidez cortante das arestas.
E no cinzento azul que se ouvia
Brumoso som de arrefecidas lágrimas.
Era a sagrada luz, naquele instante
Em que se torna sombra; e, sem deixar
De alumiar os campos, já permite
O nascer das estrelas e o cantar
Dos pássaros sedentos de penumbra.

Era o sol, comovido, e extasiado,
No seio duma nuvem, radiando
Com um fulgor anímico e velado.

E Eleonor, tão alta e inacessível,
No seu divino encanto e formosura,
Emanava outra luz espiritual,
Que as pedras embebia de ternura...

E Marânus olhava para aquela
Aparição! Sonho encarnado! Amor!
Alma tão evidente que era corpo,
Perfume tão intenso que era flor!

E a voz de Eleanor, etérea chama,
As trevas dissolvendo, assim falou:

«Sou aquela que é amada e que não ama,
Porque meu ser é eterno e virginal.
Eu vivo além do amor e da tristeza,
E destes belos montes solitários,
E de amplidão que envolve a Natureza:
O fluido mar, onde as estrelas nadam...

«Serras doiradas, cristalinas fontes,
Ondas, campos, manhãs, tudo o que abrange
A curva, em roxa cor, dos horizontes,
É para mim a Sombra originária;
Sombra de mãe, remota e dolorida,
Que ainda me traz ao peito e acaricia...
Morte de que descende a minha vida,
Como da noite morta a luz dos astros.

«Tu foste para mim o que a semente,
Na escuridão da terra sepultada,
É para a flor gentil da Primavera,
Apenas em perfume idealizada...
Tu és o meu passado, assim as árvores
São talvez teu passado; misterioso
Tempo em que o mundo trágico ensaiava
Seu anímico voo esplendoroso!
E, depois, tu nasceste, ó criatura!
E, sofrendo ideal melancolia,
Outra vida sonhaste, mais perfeita...

«Sonhaste-me...e fui dada à luz do dia...

«Vivo em teu coração; mas, em ti próprio
Há tão grandes distâncias como aquelas
Que inundam de penumbra e silêncio
O espaço que medeia entre as estrelas.

«E que importa a distância que separa
Teus lábios dos meus lábios? E que importa
Que eu seja luz eterna e sempre clara
E tu sombra carnal e transitória?
Que tu vivas, além, num outro mundo,
Se nos prende o olhar à estrela e o mar profundo
À sede que o sol tem das nossas lágrimas?

«Sou aquela que é amada; mas não amo,
Porque o amor odeia o que é eterno;
E as suas labaredas se alimentam
Do que é mudança, tempestade, inferno!»

Logo, a Pastora, inquieta: «És o demónio,
Que vais pisando a sombra caminhante
Deste homem que delira e tem, na fronte,
O Destino que o faz andar errante!
Ah, para que o persegues, sem piedade?
E para que roubá-lo aos meus carinhos?
Não és da nossa pobre humanidade,
Nem pertences à terra e à luz do sol!
Ignoras a alegria de quem ama
E se sente mortal em seu amor.
E nunca ardeu, em ti, aquela chama,
Que nos transforma em cinza e poeira vã!
Tu nunca foste esposa, filha ou mãe
De condenados, de mártires, desgraçados!
Nunca ergueste, nas mãos, saudando alguém
O cálice divino da Amargura!
Essa tua quimérica beleza,
De Deusa e não humana, desconhece
A sagrada volúpia da tristeza
E o antegosto abismático da morte.»

E Eleonor, sorrindo: «Eu te perdoo
Essas loucas palavras que disseste.
Tu viste-me, e não sabes quem eu sou.
Assim tenho vivido incompreendida

A Donzela, mais pálida, escutava
Aquela voz - tão séria! - de Eleonor
Que os ermos ventos frios imitava,
Quando perpassam na ramagem densa:

«Solitária Pastora, que eu avisto,
Encantada nas brumas da Natura,
Tu não vês o lugar onde eu existo
Nem a essência divina do meu rosto!
Nunca a alegria plena tu sentiste,
Nem o prazer infindo! E a doce luz
Dos teus olhos, às vezes, é tão triste
Que dá melancolia às próprias coisas...
És a beleza, sim, que a vária sorte
Em efémero barro quis moldar;
E os teus beijos, mulher, sabem às lágrimas
Que não podes, aflita, derramar!
Ah, sempre te contemplo da distância
Que separa dois reinos, como tu,
Contemplas uma rosa, nessa infância
De Abril que, no teu corpo, se insinua.
Quando olhas para uma árvore, talvez ela
Fique toda a tremer e tenha medo!
E as árvores talvez sejam como espectros
Para o nocturno e trágico rochedo...
E eu o que sou para ti? O mesmo que és
Para as flores do campo; o novo ser
Dum novo Reino; a lama, a esplendidez
Em que a vida, por fim, se converteu.

«Tu és o amor amante; eu sou o amor
Amado. Eu sou a vida e tu somente,
És aquilo que vive. Eu sou a dor
E a dor não sofre, não, mas é sofrida.»

E Marânus, depois: «Eu te prometo
A sublime e final revelação.
Para o grande silêncio vem comigo
E também para a grande solidão.»

E Eleonor, estendendo a mão direita,
Apontou-lhe o horizonte montanhoso,
De onde a florida aurora nos espreita,
Por entre névoas de íntimo fulgor.


Teixeira de Pascoaes in Marânus. Assírio & Alvim, 1990

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Os murmúrios da floresta

A floresta estava agitada.
Naquela floresta havia sempre um murmúrio, um murmúrio regular, surdo como o eco de sinos longínquos, tranquilo e vago, como uma suave romança sem palavras, como uma recordação do passado. Aquela floresta estava sempre cheia de murmúrios, porque era muito velha e nunca tinha sido violada pelo machado dos lenhadores. Os altos pinheiros seculares erguiam os seus troncos vermelhos, como um exército sombrio, cerrando as copas verdes em espessas abóbadas.
Debaixo destas, tudo era calmo e cheirava a resina. Através do tapete de agulhas verdes, que cobria a terra, cresciam grandes fetos fantásticos, completamente imóveis. Nasciam ervas nos sítios húmidos. Florinhas humildes vergavam de cansadas as suas pesadas cabecitas. Mas nos cimos ouvia-se, incessantemente, sem interrupção, a selva a murmurar, soltando suspiros doloridos. (pp. 95)
Korolenko in Contos. Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941.

Jane\'s Departure, 1976

A UMA RAZÃO

Um toque do teu dedo no tambor dispara todos os sons e começa
a nova harmonia.
Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua arrancada.
Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, _ o novo amor!
«Troca os nossos lotes, livra-nos das pragas, a começar pela praga
do tempo», cantam-te estas crianças. «Ergue não importa onde a substância
dos nossos destinos e do nosso arbítrio», imploram-te.
Chegada a todas as horas partida para todos os lados.

Jean-Arthur Rimbaud
in Iluminações Uma Cerveja no Inferno. Trad. Mário Cesariny. Assírio&Alvim, 1999.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ma l'amore no

Pranto de Ménon Por Diotima (6)

6
Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?
Acontecer-me-á o mesmo que aos descrentes que no passado
Mesmo assim se sentaram no banquete divino com brilho no olhar,
Mas, em breve saciados, esses convidados em delírio,
Emudeceram então e agora, sob o canto das brisas,
Adormeceram sob a terra em flor, até que alguma vez
O poder de um milagre, aos que pereceram, faça
Regressar e de novo mover-se sobre o solo verdejante.
Um sopro sagrado percorre divinamente a figura da luz,
Quando a festa se anima e se agitam vagas de amor,
E na embriaguez celeste a torrente viva rumoreja,
Quando soa no subsolo, e a noite oferece os meus tesouros,
E, subindo à tona dos ribeiros, o ouro enterrado cintila.



Hölderlin. Elegias. Edição Bilingue. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Assírio&Alvim, 1992

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Led Zeppelin-Stairway to Heaven




There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying a stairway to heaven
And when she gets there she knows if the stores are all closed
With a word she can get what she came for

Oh, and she's buying a stairway to heaven

There's a sign on the wall but she wants to be sure
'Cause you know sometimes words have two meanings
In the tree by the brook there's a songbird who sings
Sometimes all of our thoughts are misgiving

(2x)
Oh, it makes me wonder

There's a feeling I get when I look to the west
And my spirit is crying for leaving
In my thoughts I have seen rings of smoke through the trees
And the voices of those who stand looking

Oh, it makes me wonder
Oh, and it makes me wonder

And it's whispered that soon, if we all called the tune
Then the piper will lead us to reason
And a new day will dawn for those who stand long
And the forest will echo with laughter

Woe, oh
If there's a bustle in your hedgerow
Don't be alarmed now
It's just a spring clean for the May Queen

Yes there are two paths you can go by
But in the long run
There's still time to change the road you're on

And it makes me wonder

Oh

Your head is humming and it won't go, in case you don´t know
The piper's calling you to join him
Dear lady can you hear the wind blow and did you know
Your stairway lies on the whispering wind

And as we wind on down the road
Our shadows taller than our souls
There walks a lady we all know
Who shines white light and wants to show

How everything still turns to gold
And if you listen very hard
The tune will come to you at last
When all are one and one is all, yeah

To be a rock and not to roll

Oh

And she's buying a stairway to heaven

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Florbela Espanca

Ontem, em conversa com um residente de Matosinhos, e admirador profundo da poetisa, ouvi falar pela primeira vez do seu poema último. Fica aqui um breve resumo, dessa descoberta.

«Faleceu no dia 8 de Dezembro de 1930, em Matosinhos, onde foi sepultada. Na sua mesa de cabeceira estava um copo de leite e debaixo do colchão da sua cama foram encontrados dois frascos vazios de Veronal.
Em 1949, João Maria Espanca perfilha Florbela. Em 1964, um grupo de admiradores de Florbela e o Grupo de Amigos de Vila Viçosa procedem à trasladação dos restos mortais de Florbela para o cemitério de Vila Viçosa, julgando assim cumprir uma vontade da poetisa. No entanto, alguns anos depois, surge manuscrito um poema seu que manifesta:

“Eu quero, quando morrer, ser enterrada
Ao pé do Oceano ingénuo e manso,
Que reze à meia-noite em voz magoada,
As orações finais em meu descanso…” »

Daqui

Once in the South, 1988

A Perfeição

O facudo Ulissess acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante os muros de Tróia:
_Oh deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência, e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das cores da decrepitude, e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas oh deusa, justamente pelo que ela tem de mais incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, a apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, nesta casa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e fruta dos vergéis, enquanto, tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia divina! Em oito anos, oh deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus olhos verdes rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio...E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade; e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - Foi culpa tua, mulher! - erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame de um amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários.
Assim o facundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia: e serenamente a deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu.
No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e espalhava por sobre o mar um vapor rúbido e dourado. Em breve os caminhos da ilha se cobririam de sombras. E sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem desejo, e a deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.
Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa .(pp.236/7)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A Perfeição

Não, deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o coração dos imortais! Se resisti às sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras entre Cila e Caríbdis, e venci Polifermo com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, oh deusa, para que, agora, na ilha de Ogígia, como passarinho de pouca penugem, no seu primeiro voo do ninho, caia em armadilha ligeira arranjada com dizeres de mel! Não, deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos deuses, que não preparas, com esses quietos olhos, a minha perda irreparável!
Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente...Então a deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E caminhando para o herói, correndo os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez:
_Oh maravilhoso Ulisses - disse - tu és, bem na verdade, o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, deusa, empreenderia, se o fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!...
O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
_Mas jura...Oh deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os deuses moram:
_Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, que é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, oh homem, príncipe dos homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores...
O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas:
_Onde está o machado do teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh deusa!...O dia baixa e o trabalho é longo!
_Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino....Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força...Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta.


Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa .(pp.234/5)

Singularidades de Uma Rapariga Loura

A Perfeição

Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira de uma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia, que o magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com a negra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois, pousando no vasto ombro do herói os seus dedos tão claros como os de Eos, mãe do dia:
_Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o mar! Os deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos, e calques de novo a terra da pátria...
Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou da rocha musgosa:
_Oh deusa, tu dizes!...
Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:
_Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam...Mas certamente confiarei o machado de bronze que foi do meu pai, para tu abateres as árvores que eu te marcar, e construíres uma jangada em que embarques...Depois eu a proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado...
Eça de Queiroz . Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa. (pp. 233)

A Perfeição

«...E ao herói, que recebera dos reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade de uma ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando as águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma deusa que, sem cessar, o desejava.» (pp.228)

Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa

Jeunesse

I Dimanche


Postos de lado os problemas, a inevitável descida do céu e a visi-
tação da memória e a sessão de ritmos ocupam a casa, a cabeça
e o mundo do espírito.
-Um cavalo lança-se no turf suburbano ao longo das culturas
e dos arvoredos, atacado pela peste bubónica. Uma pobre mulher de
comédia, algures no mundo, chora improváveis abandonos. Os des-
peradoes languescem depois da trovoada, da bebedeira e das feri-
das. Crianças sufocam maldições nas margens dos rios.
Retomemos o estudo ao som da obra devorante que alastra e
sobe as massas.

Jean-Arthur Rimbaud in Iluminações Uma Cerveja no Inferno. Trad. Mário Cesariny. Assírio & Alvim, 3ª ed., 1999
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