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domingo, 20 de março de 2016

A Sociedade do Cansaço (recensão)

Texto na Enfermaria 6
Com A Sociedade do Cansaço (Müdigkeitsgesellschaft, 2010), tradução de Gilda Lopes Encarnação para a Relógio D’Água, 2014, Byung-Chul Han (sul coreano, estudante de metalurgia, formando-se depois em filosofia na velha Alemanha, com um doutoramento sobre Martin Heidegger) veio abanar o meio filosófico alemão (quase medusado pela áurea oceânica de Peter Sloterdijk). Estranha-se que um livro tão curto (60 pp. na tradução portuguesa) tenha tido um impacto tão grande (apesar do autor ser desconhecido, vendeu quase imediatamente 2000 exemplares na Alemanha, está traduzido em várias línguas e tem recensões prolíficas em francês e inglês). Talvez a palavra “cansaço – dentro da tese de Byung-Chul Han de que somos a civilização do cansaço (mau), uma doença, epidémica, sem verdadeiro antídoto – tenha despertado o interesse do grande público.
Porquê? Porque na nossa época (alucinada pela performance, cujo imperativo económico-moral poderia ser: “que as regras da tua conduta sirvam como modelo universal de performatividade!”) não há reais inimigos exteriores.[1] Nas doenças bacterianas, e nas sociedades da disciplina, era preciso combater as bactérias, ou as ordens, nas viroses, os vírus, era a cena tradicional das patologias modernas. Mas na tardomodernidade (aposta da tradutora para postmodern) a imunização já não trabalha com os meios defensivos normais: fechar ou dificultar o acesso da doença e construir anticorpos. Na época bacteriana, os amigos e inimigos estavam claramente definidos, princípio da Guerra Fria e da oposição proletariado/capitalistas. Esta polarização simplista tornou-se anacrónica, o estrangeiro e o estranho já não são inimigos, mas coisas diferentes, e a simples diferença não possibilita reacções imunitárias. Tanto mais que “O paradigma imunológico não é compatível com o processo de globalização.” (p. 12) A verdadeira ameaça não vem agora de outrem, mas do próprio, cheio de positividade, alimentada, e alimentando, uma sobre-produção e uma sobre-comunicação histriónicas, contra às quais, por serem da mesmidade, não se consegue realmente reagir (dinâmica cancerígena). Por excesso de positividade, a revolta tornou-se impossível, gozamos de uma infinita liberdade de escolha para produzir, consumir e comunicar até ao esgotamento, na vaga esperança de “nos realizarmos”. Segundo Byung-Chul Han, a actual omnipresença da performance demonstra o declínio das sociedades da disciplina e da obrigação descritas por Michel Foucault, hoje o sujeito modelo é o sujeito performativo, arredado de qualquer combate por princípios de justiça. Autodefinindo-se dentro dos limites que ele próprio escolheu para agir e ser. Sujeito pós-colectivo, o seu estilo de vida extrema o individualismo. Senhor e escravo de si mesmo, não se submete a ninguém, excepto a si e à ilusão de uma liberdade benigna sem limites. Em boa verdade, esta liberdade é paradoxal porque exige solidão (“o Eu tardomoderno está totalmente isolado”, p. 34), quando para Han a liberdade é sempre a liberdade com os outros. E este paradoxo acaba por manifestar as linhas patológicas do cansaço: “A sociedade de trabalho e de produção não é uma sociedade livre. A dialéctica do amo e do escravo não desemboca, afinal, numa sociedade em que cada homem que seja capaz de se entregar ao ócio é um ser livre. Ela conduz antes a uma sociedade de trabalho em que o próprio amo se tornou escravo do trabalho.” (p. 35) Por outro lado, a ausência de crenças, o despojamento narrativo do mundo, reforça o isolamento e “o sentimento de efemeridade, tornando a vida nua.” (p. 34)
A “sociedade disciplinar” de Foucault (fabricada em instituições como os hospitais, manicómios, prisões, fábricas, escolas...) foi revogada, “A analítica do poder de Foucault já não é capaz de descrever as mudanças psíquicas e topológicas que aconteceram com a transformação da sociedade disciplinar em sociedade de produção.” (p. 19) Na “sociedade disciplinar” dominava o não, uma negatividade que produzia loucos e criminosos. “A sociedade da produção gera, em contrapartida, deprimidos e frustrados.” (p. 20) É por isso que Han relê o Bartleby de Melville para além das interpretações metafísicas ou teológicas (sobretudo Gilles Deleuze em Critique et clinique), realçando o seu fundo patológico: “Esta ‘história de Wall Street’ apresenta-nos um mundo de trabalho desumano, habitado por pessoas reduzidas, todas elas, a animal laborans.” (p. 45) Mas não se pense que este animal tardomoderno entrou, como transparece em algumas leituras de Bartleby (Deleuze, Agambem...), em negação ou passividade (“I would prefer not to”, Bartleby), ele “é dotado de um Ego tão grande que quase transborda. E é tudo menos passivo.” (p. 33) Só que a sua positividade é patológica, alimenta um sem número de doenças neurológicas e aprofunda o individualismo.
Na época da performance, há uma “violência da positividade, resultante da sobre-produção, sobre-rendimento e sobre-comunicação” (p. 14), e “O esgotamento, a fadiga e a sensação de sufoco perante o excesso não são também […] reacções imunológicas.” (p. 15) Sem uma verdadeira auto-reacção, “A comunicação generalizada e a sobre-informação ameaçam todas as defesas do ser humano.” (p. 14) Já não há sequer gestos impulsivos, primitivos, capazes de desenvolver uma destruição redentora, “A dispersão generalizada, marca da sociedade dos nossos dias, não permite que a ênfase ou a energia da fúria emirjam verdadeiramente. A fúria desenvolve a capacidade de interromper um estado e de fazer nascer um estado novo.” (p. 41) Por isso, as doenças neurológicas alastram, o burnout ou a hiperactividade, por exemplo, retratam bem a dispersão e a positividade, “O prefixohiper da hiperactividade não é uma categoria imunológica. Representa, pura e simplesmente, uma massificação do positivo.” (p. 17) A relação humana com o tempo alterou-se radicalmente, vive-se em multifuncionalismo (multitasking), dispersão e velocidade, mas isto não representa qualquer progresso civilizacional, “O multifuncionalismo é, com efeito, amplamente praticado pelos animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável à sobrevivência dos animais na selva.” (p. 25)
Han foca-se no mundo do trabalho, na vita activa do homo laborans (convocando e desviando-se de Hannah Arendt), este mundo impõe a violência da positividade que forma a nossa interioridade. A sociedade disciplinar, com excesso de regras e fronteiras, de negatividade, foi substituída pela da performance, do sucesso individual, onde cada um se condiciona a si mesmo, na lógica do empreendedor singular. A motivação pessoal, o espírito de iniciativa e a responsabilidade pessoal são agora a linhas de orientação desta sociedade atomizada e sobre-positiva. A negatividade do “dever” foi substituída pela positividade do “poder fazer”, sintetizada no slogan de Obama: “Yes we can!”. As pessoas já não são exploradas por patrões ou instituições, exploram-se a elas mesmas, tornando-se simultaneamente senhores e escravos. Estamos em guerra contra nós mesmos, uma guerra que desemboca num cansaço estéril.
Contra esta vita activa, suicidária, Han elogia a vita contemplativa, o tempo gasto gratuitamente. Por falta de contemplação e de repouso, a nossa civilização dirige-se para uma nova barbárie, a sociedade da performance é patológica. E esta mudança de paradigma acontece de forma invisível, a sociedade da negatividade cede quase secretamente o seu lugar a uma sociedade que tem excesso de positividade, com as suas doenças neuronais, como a depressão, o défice de atenção/hiperactividade ou o burnout. Não se trata, como disse, de nenhuma infecção vinda do exterior, mas de um enfarte da alma, devido a um excesso de positividade. Por isso escapa a qualquer profilaxia imunológica.
No último capítulo, “A sociedade do cansaço”, relativamente redentor, Byung-Chul Han refere que “Enquanto sociedade activa, a sociedade da produção evolui progressivamente para uma sociedade do doping.” (51) Um doping que entretanto foi traduzido pela expressão mais aceitável de neuro-enhancement, e que todos aceitam desde que permita mais rendimento no trabalho, com a única preocupação de se garantir uma certa equidade no acesso a esses fármacos para que isto degenere numa concorrência farmacêutica sem controlo. Mas este produtivismo pobre em negatividade “produz um cansaço e esgotamento excessivos.” (52) Cansaço patológico, porque individualiza, “separa e isola”. Cansaço violento, porque “destrói tudo o que possa haver em comum, tudo o que se possa fazer em conjunto, aniquilando qualquer proximidade e a própria linguagem”. (52)
De onde vem, pois, a “redenção” de que falámos há pouco? Byung-Chul Han remete-nos para Peter Handke e o seu Versuch über die Müdigkeit (1992), onde se  fala de “cansaço alienante” mas também de um bom cansaço, iluminante (que, aliás, ocupa grande parte deste capítulo, como se Han quisesse terminar com uma nota conciliadora), que dá a ver e a pensar, que se situa entre, favorecendo por isso a coexistência. É, diz Han, um “cansaço que habilita o homem para uma serenidade especial, para um não-fazer sereno.” (54) Pelo contrário, “O cansaço associado ao esgotamento é um cansaço da potência positiva. Torna o homem incapaz de fazeralguma coisa.” (55) O cansaço associado ao esgotamento potencia a acção na comunhão, impulsiona para a realização de alguma coisa: “O cansaço de Handke não é o cansaço do Eu esgotado, do Eu exausto […], Handke concebe uma religião imanente do cansaço.” (pp. 55-56)
Vem talvez a propósito convocar Fernando Pessoa e o seu Cansaço, do metrónomo modernista Álvaro de Campos: “O que há em mim é sobretudo cansaço – / Não disto nem daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada: / Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço. […]” Antevisão do cansaço do “Eu esgotado” de Byung-Chul Han, mas que a mim sempre me insuflou uma melancolia produtiva.

[1] Alain Ehrenberg em La fatigue d’être soi. Dépression et société, 1998, defendia, num tom mais sócio-psicanalítico, que o cansaço provinha da obrigação de se ser si mesmo, de uma realização pessoal assumindo aquilo que se é, tarefa muito mais exigente do que a da velha obediência e respeito pelos interditos, onde a identidade se construía essencialmente pelo género, a classe social e o grupo profissional. Tudo isto enquadrado pelas lógicas disciplinares e de autoridade. Mas Ehrenberg avançava já com o mito do empreendedorismo, com poucos vencedores e muitos vencidos, sem nenhum exterior para responsabilizar, o falhanço na idade neoliberal deve-se exclusivamente a quem tentou mal ou não tentou, em vez de agressividade social fica-se com a vergonha de si mesmo. Tudo isto, diz Ehrenberg, aumenta exponencialmente os distúrbios de personalidade. 

terça-feira, 22 de abril de 2014


ANGÚSTIA DA EXACTIDÃO
by Victor Gonçalves in Analítica da Actualidade


Próxima das neuroses obsessivas, de que todos os génios produtivos sofrem (em graus e intensidades diferentes), a angústia da exactidão alimenta-se de uma profunda paixão pela ordem (feita exclusivamente de leis cósmicas, bem para lá da condição humana), jogo de escrúpulos irrazoáveis, mania de auto-correcção permanente. Creio que todos os grandes criadores, quer se exponham na música, na literatura, na filosofia, na pintura, na dança, ou noutro qualquer exercício de pensamento lógico-criativo (onde se situam também os cientistas inovadores) foram, de uma ou de outra forma, obsessivos e tendencialmente compulsivos. Quando, por exemplo, Lobo Antunes diz que não pode viver sem escrever, mas que demora mais tempo, muito mais, a corrigir do que a criar a primeira versão, vive, à sua medida, na angústia da exactidão.
Mas a patologia é apenas uma possibilidade, embora a mais extrema. Noutros termos, a neurose obsessiva não é necessariamente o culminar de um processo, onde aconteceria a exaustão de um indivíduo. Na verdade, é o produto da obsessão que vai ditar em que campo ela se inscreve, a obsessão é um pharmakon (remédio e veneno). Se a linha de fuga for a física quântica ou um tratado de filosofia medieval, uma sinfonia completa ou uma instalação minimalista plena de mundo, um romance polifónico de 400 páginas..., isto é, se o produto dessa dedicação integral, dessa fidelidade sem fissuras for uma obra que encerra riqueza suficiente para conjurar a extrema focalização do sujeito num processo criativo, então a patologia habitual dos obsessivos – destruidora de afectos, de ligações emotivas e racionais, da lucidez poética inventiva – não emergirá, ou melhor, dificilmente emergirá. Nos génios (chamemos-lhe assim para facilitar) a produção de obras é a cura homeopática dos impulsos obsessivos negativos.
Noutros registos de vida, menos intensivos, sem a força ou a sorte para fazer nascer algo de extraordinário, também existe esta angústia que ensombra com dúvidas (anti-cartesianas) as coisas que vamos fazendo: aquela vírgula mal colocada que potencia insónias; o conceito que escapou à censura lógica e agora corrompe a felicidade que pensávamos retirar do ensaio publicado; a metáfora gasta, vulgarizada que dissemos nunca mais usar mas que se introduziu furtivamente no poema, impossível de rasurar porque outras exactidões seriam destruídas; um personagem, a quem demos a honra de conduzir a história, incapaz de encaixar na narrativa sem minar o equilíbrio perspectivista; uma nota deslocada, dissonante na partitura, que recusa silenciar-se e corrompe a arquitectura melódica; ou o facto, esse velho evangelho da objectividade, cortado pelo relativismo de uma análise incoerente.
Mas também aqui o resultado feliz, num belo produto, das preocupações exageradas transforma o que destrói no que salva e faz crescer, conduz a uma plenitude que jamais será alcançada através dos gestos codificados da vidinha.
II
Há umas semanas lia uma pequena entrevista de Jorge Silva Melo a propósito de O Regresso a Casa de Harol Pinter para o D. Maria II. Aí pronunciava um magnífico elogio aos seus actores, apelidando-os de “actores exactos” (João Perry, Rúben Gomes, Maria João Pinho, Elmano Sancho, João Pedro Mamede e Jorge Silva Melo). Mas aqui percebe-se que não se trata da “angústia da exactidão”, antes do perfeito domínio de uma arte onde se improvisa pelo menos tanto quanto se representa (repetir um modelo, voltar a apresentá-lo). É a exactidão da criação, como quando Gilles Deleuze no diz que o sentido de um acontecimento não o precede, ele surge à medida que o próprio acontecimento se desenrola. Por isso, este pensador francês prefere ao termo “exacto” o de “anexacto”, um outro tipo de rigor: do estilo e do gosto mais do que da adequação entre o empírico e o ideal, o modelo e a cópia. Também Ludwig Wittgenstein quis nasInvestigações Filosóficas, com o conceito de “jogos de linguagem”, mostrar que “o significado de uma palavra está no seu uso”. Neste sentido, a verdade de algo resulta do seu funcionamento dentro de um determinado jogo de linguagem (Mendel não podia estar certo mesmo estando-o, porque o jogo de linguagem dominante da sua época não podia aceitar a sua linguagem quase privada sobre a hereditariedade. Que hoje, num volte-face de thriller, é a que domina). Foucault falará ainda mais claramente em “jogos de verdade”, relativizando com isso a exactidão, visto que a verdade é relativa ao que uma época/cultura considera como verdadeiro. Mas talvez seja mais clara ainda a afirmação de Jean-Luc Godard (brilhante Pierrot le fou), cito de memória: “não tenhais ideias justas, mas somente uma ideia”. Como se desconfiasse, até politicamente, da exactidão das ideias, instrumento várias vezes utilizado ao longo da história para impor a servidão, a quem percorreu a via-sacra para as encontrar e a quem as recebe e se vê obrigado a abdicar da liberdade de as recusar, porque, finalmente, sempre são “ideias exactas”.
Tenhamos, pois, uma ideia, anexacta ou rebelde, excêntrica em relação ao nosso verdadeiro, aos jogos de linguagem da opinião, mais ou menos erudita, deixemo-la emergir evitando as angústias estéreis. É que talvez toda a metafísica do mundo se esgote quando acolhemos o sol sentados numa esplanada à beira-mar.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

«A necessidade da poesia»

As palavras de Jean Cassou, citadasno incipit, não perderam actualidade: a poesia continua a ser «a mais perfeita expressão do homem, a sua mais alta operação espiritual». Se o seu fim «é explicar o homem, acompanhá-lo, exaltá-lo no decurso da sua prodigiosa ascensão», a poesia não pode, por outro lado, deixar de reflectir «a vida dramática do homem que a todo o custo procura humanizar o mundo, mudar a vida».


Vd. Árvore – folhas de poesia, Edição fac-similada. Introdução e Índices de Luís Adriano Carlos [«Uma Árvore no meio do Cosmos ou o Retorno do Sublime»], Porto, Campo das Letras, 2003. 1.º Fascículo -Outono de 1951. Texto «programático», impresso em itálico.

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