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domingo, 30 de maio de 2021

Turva hora onde
Principia a noite
E o dia se esconde.

Hora de abandonos
Em que a gente esquece
Aquilo que somos
E o tempo adormece.

Nevoenta hora,
Hora de ninguém
Em que a gente chora
Não sabe por quem.

E tudo se esconde
Nessa hora onde
Por estranha magia
Brilha o sol de noite
E o luar de dia.

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 33

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

FÚRIAS

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo estraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço
E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contratempo

© 1991, Sophia de Mello Breyner
Uit: Obra Poética III
Uitgever: Caminho, Lisboa


FURIES

Banished from sin and the sacred
Now they inhabit the humble intimacy
Of daily life. They are
The leaky faucet the late bus
The soup that boils over
The lost pen the vacuum that doesn’t vacuum
The taxi that doesn’t come the mislaid receipt
Shoving pushing waiting
Bureaucratic madness

Without shouting or staring
Without bristly serpent hair
With the meticulous hands of the day-to-day
They undo us

They’re the peculiar wonder of the modern world
Faceless and maskless
Nameless and breathless
The thousand-headed hydras of efficiency gone haywire

They no longer pursue desecrators and parricides
They prefer innocent victims
Who did nothing to provoke them
Thanks to them the day loses its smooth expanses
Its juice of ripe fruits
Its fragrance of flowers
Its high-sea passion
And time is transformed
Into toil and the rush
Against time

RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino

© 1991, Sophia de Mello Breyner
Uit: Obra Poética III
Uitgever: Caminho, Lisboa


 
PORTRAIT OF AN UNKNOWN PRINCESS

For her to have such a slender neck
For her wrists to bend like flower stems
For her eyes to be so clear and direct
Her back so straight
Her head so high
With such a natural glow on her forehead
It took successive generations of slaves
With stooping bodies and patient rough hands
Serving successive generations of princes
Still a bit coarse still a bit crude
Cruel greedy and conniving

It took an enormous squandering of life
For her to be
That lonely exiled aimless perfection
© 1991, Sophia de Mello Breyner
Uit: Obra Poética III
Uitgever: Caminho, Lisboa


© Vertaling: 2004, Richard Zenith


domingo, 16 de setembro de 2018

«Ficaram mortos sem cemitério
Sem se lembrarem de ter morrido»

Natália CorreiaPoemas a Rebate. Poesia Século XX. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1975., p. 25

QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS

Natália Correia. Poemas a Rebate. Poesia Século XX. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1975., p. 13

quarta-feira, 29 de março de 2017

Na sensação de estar polindo as minhas unhas
sei que morrerei no dia do aniversário da minha morte
ainda há coisas certas na vida
o dia do aniversário da minha morte apresenta tamanha discrição
que nem dou por ele
portanto não mudarei de roupa
talvez passe o dia deitada
no displicente descanso
de não atender telefones
nem me levantarei para ir ver o correio
e se alguém se lembrar de me acender
as inconsequentes velinhas
deixarei que derretam e estraguem o bolo
no dia do aniversário da minha morte
nem me penteio

Rosalina Marshall
(...)
«ninguém sabe
a que me sabe
a minha boca»
Rosalina Marshall


Adília Lopes

 (“sinto um desconforto qualquer/ por usar soutien/ mas se não usasse/ era muito ordinária/ e os homens não gostariam de mim/ por ser demasiado fácil verem-me as mamas”) 

quarta-feira, 19 de março de 2014

ÁGUA DA MORTE

São humanos, meus rios.
A lua aberta, resignada tela.
Os dedos que desfio
Descidos de um terror de vidro frio
Desperdícios de luz e de cratera.

Mas tudo, ó verde planta da manhã,
Dor de seiva insistente sob a neve,

Estremece geométricos destinos.
Noite de multidões. Serpente de marés.
Água. Água de morte. Água de sinos.

Assim, velha montanha me levantas.
Assim, vou para ti, rastejo, quero.
Assim desfiro a nota vertical
Desespero animal do desespero.

E não proíbam mais o retrocesso
Ao real abandono.
Não enfeitem os arcos de mentiras
No triunfo do sono.

E não digam: - «Tem tudo. Que mais quer?»
Seca de névoa, a água horizontal
Quer a nascente para bem-morrer,
E a cada passo atrás desaparecer.
Água de Morte.
                          Bíblica Mulher.
Estátua de sal.
 
(«A Segunda Imagem»)




Natércia Freire . Antologia da Poesia Feminina Portuguesa - António Salvado., p. 238/9

quinta-feira, 13 de março de 2014


(...)

«E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!
     Porque és assim tão escura, assim tão
                                                                     [triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!
          Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!...Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!»


Florbela EspancaAntologia da Poesia Feminina Portuguesa - António Salvado., p. 162

domingo, 9 de março de 2014

terça-feira, 28 de junho de 2011

Há noites

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;



Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 118
«Mas só porque te olhei e não te vi
Tu vens ao de cimo e não me dizes nada.»



Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 112
Ó noite! Mãe dos lírios e das feras



Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 97

CANÇÃO ENTREGUE AO NADA

Hoje venho oferecer esta tristeza às coisas
No gesto esquivo de não as desejar.
Pôs em minha alma como o sol nas frias lousas
A vida o gosto de esplandecer em recusar.

São-me alheias estas margens onde corre
O destino que aos dados aos deuses eu lancei.
O que me dói é ver que tudo morre
Noutras mãos em gestos que tracei.


Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 87/8

domingo, 26 de junho de 2011

CANTOS DE SAFO PARA ÁTIS


Mon Athis n'est pas revenue sur ses pas!...
Safo


I

Espero-a num silêncio de margem
enfeitiçada do rio e da viagem.
E na noite mais densa e mais acesa
onde aranhas de luz tecem um corpo
para a sua alma de princesa.

II

Desfez-se a brisa em meu cabelo agreste
Átis de corpo vegetal
perfumado e silvestre.
Lírio florido na mão que te procura
com delírios nos olhos
mordidos na cintura.

III

Como pombas
seus seios vêm pousar nas minhas mãos.
Estremecem e partem.
Como pombas minhas mãos os perseguem.

IV

Virginal
abandonou-se no meu colo
claro e penetrante como o olhar de Apolo.
Partiu
purificada na alegria
dum corpo que lhe dei.
Fiquei
na estrela que o brilho me copia.
Acesa mas tão fria.

V

Lentos meus gestos desenham o seu rosto
rasgando a escuridão da sua ausência.
E o meu canto enleia-se no gosto
de a cantar em distância e em transparência.


Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 87/8

DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA

    Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo em que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão o punhal
para vibrar aquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.


Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 83

VI

Ó noite rosa de cabelos negros
com incêndios nos espinhos.
Bebida na taça dos meus olhos
como os vinhos.

Ó noite carne escura.       Marinheiro
Viagem de que fantástico veleiro?



Natália Correia. Poesia Completa. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 79
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