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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

«O mar é grande, inesgotáveis são também os desertos,
e não se sofre melhor longe destes lugares...?»


Negras colinas

Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 165

Abalo

Eu vou lá gritar, gritar bem alto
e chamar o meu pai e apresentar uma confissão,
levantar-me no fogo e meter as minhas mãos em chamas
na garganta da neve.

Vou expulsar dos campos as flores, para que regressem a casa,
e quebrar os ramos aos meus arbustos para o abalo da morte.
Vou dar uma carta à minha tristeza e recomendá-la a Deus
e dizer-lhe que ela é vida como nenhuma outra vida,
tristeza no crepúsculo das cidades natais!

Eu vou lá anunciar donde vim
e para onde vou.
Eu vou até onde ninguém me possa alcançar
com sapatos sujos. Nenhuma frialdade há-de empedernir o meu coração
perante a incerteza dos deuses ensombrados!





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 135

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Tormento

Morro diante o Sol e
diante o vento e diante as crianças que disputam o cão, morro
numa manhã que não pode vir a ser nenhum poema; só triste e verde e
interminável
é essa manhã...O meu pai e a minha mãe estão na ponte e julgam
que eu venho da cidade e não me trazem senão
as suas primaveras destroçadas em grandes cestos e vêem-me -
e não me vêem, porque
eu morro diante do Sol.

Um dia não verei mais os bosques, e a erva
há-de colher a tristeza da minha irmã. O arco da porta
ficará negro e o céu já não será
inatingível
para os meus desesperos...Num dia hei-de
ver tudo e a muitos enxugar os olhos
de manhã cedo...

Estou então de novo debaixo dos jasmins e
vejo como o jardineiro dispõe os mortos nos alegretes...
Morro diante do Sol.
Estou triste, porque há sempre dias que não voltam mais...A parte
nenhuma.



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 123

Biografia da dor

Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta
estão empilhadas as cadeiras e nenhuma das pessoas a quem
pergunto por mim me viu.
Os pássaros lançaram-se no espaço, para desenharem o meu rosto nas nuvens
por cima da minha casa e por cima do jardim dos mortos.

Conversei com os mortos e falei da guitarra do mundo,
que as suas bocas já não produzem nem os seus lábios,
os quais falam uma linguagem que ofende o cão do meu primo.

A terra fala uma linguagem que ninguém entende,
porque é inesgotável - dela arranquei estrelas e tirei e pus
nos desesperos
e bebi vinho do seu jarro,
que é feito das minhas dores.

Estas estradas levam ao degredo. Oiço Deus
atrás de uma vidraça e o Diabo num altifalante
e os dois chegam juntos ao meu coração, que anuncia a ruína das
almas.
Redemoinham as folhas, incessantes, nas ruas
e causam graves danos nos monumentos.
Quero, em Outubro, sonhar com a verdura.
Debaixo da porta está afixado um mandamento:
NÃO MATARÁS
...mas o jornal fala todos os dias de três homicídios,
que poderiam ter sido cometidos por mim ou por um dos meus amigos.
Leio essas notícias como uma fábula,
de uma facada para outra - sem me aborrecer.
Enquanto eles confundem carne e glória, a minha alma dorme
sob o movimento da mão de Deus.




Thomas Bernhard. Na Terra e no InfeNegritorno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 119-121

Tristeza

São vermelhos os montes e os meus irmãos andam no meu cérebro,
como se Jesus não tivesse sido crucificado à luz das estrelas,
que não têm medo das crueldades da minha alma, da alma
que enterrei num vale quando nem sequer era nascido, naquele tempo,
em Abril, o mês iracundo, que lava as pedras
e as torna em lousas de sepulturas, sobre as quais se encolhem as
companheiras da minha solidão,
com rostos lívidos, enquanto o vendaval lhes vai rasgando os olhos
no brilho mortiço da Lua distante.


Para quê estes dias, para quê a morte,
para quê tudo aquilo de que não gosto, o arbusto
e as flores na boca do burro e o grito
dos meus membros no Outono e a lida dos camponeses
e a glória do sofrimento com que a minha mãe me sobrecarregou ao
morrer,
oprimida pelos donos, sempre bêbados, da fábrica de cerveja na margem
do lago, que devora os meus mortos
sob o riso das estrelas.
Eu não fiz nada que pudesse prejudicar a vossa felicidade, nada,
senão escrever uns versos que fizeram chorar o meu irmão
e despertar na minha irmã - com as flores do vento de Março -
o espinho do ciúme, não comi nada
que tivesse faltado na vossa mesa, não bebi nada que cheirasse aos
vossos casamentos nem
ao cantar dos celeiros, a que eu já não posso voltar, porque
toquei o sino errado na margem do rio, que leva ao encontro
da minha aflição os crânios vazios da imortalidade,
todos os dias, uma manhã após outra, em silêncio, como seu me
tivesse desfeito em cinza, antes
de ter acordado na carne primaveril destas cidades.
Em que é que eu penso quando vejo as ruas vazias, as janelas dos
homens e das mulheres
que tanta putrefacção beberam que Deus terá de te proteger,
que despedaçaram o teu verde e o teu cinzento e o negro dos rios,
que não enalteceram a tua fonte nem a tristeza das tuas noites,
em que, com cada pedra e com cada rã, te despenhaste
no esquecimento! No esquecimento! No desespero
das raízes!
Já não vejo nenhum rosto que eu possa amar, nenhuma carne
que traga prazer ao meu anseio nem nenhuma morte
que satisfaça o meu estar só...Os campos estão vazios! As casas
estão roxas de velas! As portas rangem o seu desdém na tua fadiga
quando
tu regressas a qualquer boca depravada que possui um campo,
uma macieira, uma vaca, um pedaço de relva
te amaldiçoa...
E quando queres partir não sabes para onde!
E quando queres beber água, estás no deserto!
E quando queres mendigar, a imundície da sua riqueza já te
estrangulou!
E quando buscas a tua sepultura, trazem-te uma travessa cheia de
beleza!
...Já não vejo nenhum rosto...Só o barro negro e em decomposição
das suas enfermidades e a ira que transforma em pó a sua vida.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 113-117

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

III

Se eu pudesse dizer quantas vezes quis morrer esta noite,
morrer sem salmo e sem mãe nem pai, morrer como os animais
que sufocam, encurralados entre os muros,
morrer como um verme pisado, sem qualquer assistência,
morrer como o melro esmagado pela roda do comboio aéreo,
morrer como a alma das árvores, que mandam com o vento
os seus segredos para os oceanos, quando a Primavera chega, porque
«à la fin tu es las de ce monde ancien...»,
tanto sofrimento, tanto cheiro de corpos humanos nunca eu antes
tinha respirado.





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 93

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Na minha capital

V


Mas que encontrei eu na minha capital?
A morte com a sua boca de cinzas, aniquiladora, sede e fome,
que repugnava, porém, à minha própria fome, porque era
uma fome de carne e de pão, de rostos e retretes,
uma fome que balbucia o opróbio desta cidade,
uma fome de mesquinhez,
brilhando de janela a janela, gerando primavera e glória pútrida
sob as escadas do céu.
Eu estava preso e de podridão cansado,
longe das florestas e longe dos anseios da morte de anos em ruínas.
As pedras cinzentas e inconsistentes deste vigamento clamavam em
fúria,
mas eu mesmo não era mais que risadas, risadas do Inferno,
que me fizeram esquecer a cilada dos homens em que eu tinha caído,
uma hora negra do mundo
no vento de Novembro da minha existência...




Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 87
(...)

«Vós não dizeis nada, porque estais demasiado doentes para dizer
o que
tem de ser dito, o que faz tão tristes estes montes
e este nascer do Sol e esta labuta dos camponeses
e esta labuta dos pássaros
e esta labuta que cria destruição em cada caule, em cada leito de rio,
por toda a parte onde as mãos estão por cima da terra.»





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 81

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Por trás das árvores há um outro mundo

Por trás das árvores há um outro mundo,
o rio traz-me as queixas,
o rio traz-me os sonhos,
o rio fica silente quando eu, à noite, nas florestas,
sonho com o Norte...

Por trás das árvores há um outro mundo,
que o meu pai trocou por dois pássaros,
que a minha mãe trouxe para casa num cesto,
que o meu irmão perdeu no sono, quando tinha sete anos e estava
cansado...

Por trás das árvores há um outro mundo,
uma erva que sabe a tristeza, um sol negro,
uma lua dos mortos,
um rouxinol que não pára de se queixar
do pão e do vinho
e do leite em grandes jarros
na noite dos prisioneiros.

Por trás das árvores há um outro mundo,
eles descem em longos sulcos
para as aldeias, para as florestas dos milénios,
amanhã perguntam por mim,
pela música dos meus achaques,
quando o trigo apodrece, quando de ontem
nada ficou, dos seus quartos, sacristias de espera.
Quero deixá-los. Já não quero
falar com nenhum,
eles atraiçoaram-me, os campos sabem-no, o sol
há-de defender-me, eu sei,
cheguei tarde de mais....

Por trás das árvores há um outro mundo,
aí há uma outra quermesse,
na caldeira dos camponeses bóiam os mortos e em volta dos charcos
derrete-se em silêncio a gordura dos esqueletos vermelhos,
aí já nenhuma alma sonha com a roda do moinho,
e o vento compreende
apenas o vento...

Por trás das árvores há um outro mundo,
a terra da podridão, a terra
dos negociantes,
deixa atrás de ti uma paisagem de sepulturas
e tu irás destruir, irás dormir cruelmente
e beber e dormir
de manhã à noite, de noite até de manhã,
e não hás-de entender mais nada, nem o rio nem a tristeza,
porque por trás das árvores,
amanhã,
e por trás dos montes,
amanhã,
há um outro mundo.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 61/63

domingo, 10 de outubro de 2010

«O meu coração está cada vez mais negro,
porque de asas negras se encontra
coberto.»



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 53

Que farei...

Que farei
quando nenhum palheiro mendigar para a minha existência,
quando o feno arder em aldeias húmidas,
sem coroar a minha vida?
Que farei
quando a floresta crescer apenas na minha fantasia,
quando os regatos só já forem artérias vazias e lavadas?

Que farei
quando já das ervas não vier qualquer mensagem?
Que farei
quando estiver esquecido por todos, por todos...?


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 49
«Só há sombras onde eles misturavam água no mel
e vendiam vacas doentes a cidades cinzentas e obscuras, onde
roubavam às mães a erva e a vida e
ensinavam os filhos a morrer em colinas abandonadas.
Só há sombras e bancos desconfortáveis que não deixam
à minha carne, por muito que te esfaltes, a glória
que lhe é devida após as suas viagens.»

(...)



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 43

sábado, 9 de outubro de 2010

Podridão

Vi a Terra imperecível como o Sol
quando regressei ao sono, em busca do meu pai,
que trouxe a mensagem do último vento
à minha miserável condição, que molestava a sua glória,
a glória de que ele dizia: «Os grandes destinos
são um fracasso para amanhã...»
Imperecíveis elevavam-se as florestas, que enchiam outrora
a noite com as suas queixas e o seu discorrer
sobre o mosto e o declínio. Só o vento
passava sobre as espigas, como se a Primavera vivesse
no meio desta doce podridão.
A neve tomava uma atitude hostil e fazia-me
arrepiar os braços e as pernas, ao olhar
o Norte agitado, que parecia uma cemitério gigantesco
e inesgotável, o cemitério dos prisioneiros
desta forma de progresso, que se
insinuava em cada encruzilhada, em cada pedra de gleba
e em todas as estradas e igrejas, cujas torres se
levantavam contra Deus e contra os convidados da boda,
que se acocoravam em volta do barril de vinho, para o
beberem todo com gargalhadas imundas.
Como é que eu vi na aldeia, em cima das tábuas, estes mortos,
com ventres inchados, comendo carne vermelha,
tartamudeando os hinos da cerveja forte,
a podridão, que furtivamente deslizava pela esplanada
sob o bramir indolente do trombone...
Ouvi o lento respirar da depravação
entre as colinas...
Vi a Terra imperecível como o Sol,
a Terra, cujo Agosto estava enfermo e era irrecuperável
para mim e para os meus irmãos, que aprenderam
o seu ofício melhor do que eu, que
ando torturado por milhões de mendicâncias e já
nenhuma árvore encontro para as minhas conversas de loucura.
Saí de uma noite do Inferno
para uma noite do Céu,
sem saber quem terá de espedaçar a minha vida
antes de ser tarde de mais para falar de glória e valentia,
da pobreza e dos mundanos desesperos
da carne, que me há-de aniquilar...





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 38-41

Nas arcas negras da terra dos camponeses

Nas arcas negras da terra dos camponeses
está escrito que eu terei de morrer no Inverno,
abandonado pelos meus sóis e pelo sussurro dos baldes,
dos baldes cheios de leite mungido,
pronunciando o tormento e o fim sob os golpes do vento de Março,
que me esmaga com a evocação
das macieiras em flor e do feitiço das eiras!
Nunca aniquilei uma noite com palavras afrontosas
nem com lágrimas, mas este tempo, este tempo absurdo,
extinguir-me-á
com a sua poesia seca e afiada como uma faca!
Terei não só de suportar o abandono, mas também
de conduzir o gado dos meus pais e das minhas mães através dos milénios!
Terei de criar chuva
e neve e maternalidade
para os meus crimes e louvar a raiva
que me arruína a seara nos meus próprios campos!
Reunirei os negociantes e as prostitutas de sábado num ponto da
floresta
e oferecerei esta terra, esta terra triste,
ao seu feroz desespero!
Farei entrar mil sóis na minha
fome! Amanhã criarei
algo de transitório para a imortalidade,
perto das fontes e das torres e longe
dos artesãos,
numa madrugada que está farta dos meus sofrimentos
e na qual não acontece senão o retorno das estrelas à sua morada...
...é aí que quero falar com os desesperados
e deixar tudo
o que foi desprezo, amargura e nojo deste mundo.




Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 31-33

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O dia dos fantasmas

Amanhã é o dia dos fantasmas. Vão
erguer-se como pó
e desatar às gargalhadas.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que
caíram na terra das batatas. Não posso
negar que eu
sou culpado desta morte dos rebentos.
Sou culpado!
Amanhã é o dia dos fantasmas, que trazem
na fronte o meu tormento,
que possuem o meu trabalho diário.
Amanhã é o dia dos fantasmas, que dançam
como carne no muro do cemitério
e me mostram o Inferno.
Porque tenho eu de ver o Inferno? Não há outro caminho
para Deus?

Uma voz: Não há outro caminho! E este caminho
passa pelo dia dos fantasmas,
passa pelo Inferno.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 25
« (...)Com um grande esforço, mesmo com desespero, Bernhard procura conquistar um papel de poeta e um mundo poético que sugere a mortalidade e o pó do mundo vulgar.»
«O jovem poeta sente-se fora do seu tempo e indigno. Mas não quer deixar a poesia. E prefere percorrer, como que numa ronda clássica, o campo e as cidades, olhando a existência humana aqui e além. E chega à conclusão de que a podridão produz a decomposição da vida no campo e de que as cidades calcinadas, despedaçadas, morrem. Há por detrás das aparências um outro mundo, mas este não é o mundo nobre e elevado que se esperava, mas sim um mundo de podridão e de aniquilamento.»

Hugo Diettberner: «Der Dicher wird Kolorist. Thomas Bernhards Epochensprung», in Text+Kritik, Heft 43, Thomas Bernhard, 3. Auflage: Neufassung, November 1991, p.12/13
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