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domingo, 2 de fevereiro de 2014


«É a corrente oculta que as paixões
do fogo e da cinza levam
para os clandestinos infernos das lágrimas.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 76

''Águas nocturnas do delírio''

''De que amor destruído me agarro desamparado?''

NOITE PERENE

De repente abri os meus olhos na escuridão
-lua negra, ardósia imensa, precipício -
e nada pude ver. Senti que a minha memória
tinha-me igualmente abandonado.

A cidade absorvia o seu esgotado deserto,
como se a impassível escuridão
desde sempre ocupasse a sua amorfa existência.

A realidade vazava os meus sentidos
para quedas de água e desaguamentos,
precipitando-se num marasmo tenebroso
de invisíveis objectos repudiados.

Procurei a minha própria sombra e aquele nome,
mas encontrei o torpe esquecimento da linguagem.
A voz fez-se bruma, tácita transparência.

Tudo ficou em suspenso e continuei pela noite
da alma como um navio sem timoneiro e sem luz,
perdido entre as águas fantasmagóricas.




Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 72

''boca ensimesmada''

''Hierática no teu abismo''

''O AMOR ESCOLHE O SEU CAMINHO''

LIMOS DO DESPREZO


Se pudesse olhar-me na sede dos teus olhos
em nenhum território perderia os meus vestígios.
Os segredos mais ácidos secariam
as suas ocultas raízes destruidoras,
as sílabas clementes do perdão
voltariam a ouvir-me comovidas
sob as grandes asas de uma luz aprazível.
Mas a cabeça assegura o seu erro no delírio.
Sente elevar-se a sombra que o desprezo derrama,
onde só ressurge a impiedade
de uma tribo de espectros dilacerantes.
Ainda continuo contigo, meu desolado corpo,
incapaz de morrer, vislumbrando os dois
terríveis abandonos: a morte sem repouso
e a vida que morre sem viver nem se extinguir.


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 60

''a herança do Inverno''

TANTA ORFANDADE


No seu tremor medroso desenvolve-se
a sombria linhagem do desamparado.
Tanta orfandade abrupta sob os dias do silêncio,
tanta velha injustiça persistente
sem querer ter piedade do destino do homem.
Se pudesse cumprir o desejo supremo,
seria a impiedade que livremente se rebelasse
contra a servidão dos humilhados.
Se das minhas sementes podres pudesse crescer o meu valor
até fazer parar o sangue assassinado
e, ainda, pudesse recuperar a necessária força
para enfrentar a legião de sombras,
então apagaria os poços de dor,
rasgaria o sossego da sua aguarela aracnídea
cegando a altivez do perene culpado,
para que prisioneiro desapareça
no seu mortal e ubíquo labirinto.





Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 56

ESSA IDADE


Cheguei a essa idade em que os dias
são o pulsar cansado que antecede a morte,
e a vida espreita por detrás de um vidro embaciado
como se não soubesse já o caminho,
nem forças tivesse para continuar às escuras
dissimulando perante a dor que a ameaça.

A paisagem está tão quieta, as árvores não agitam
memórias, tudo pesa no fastio
da alma, que tão lentamente se consome.
Fatigado, sem ímpeto nem voz,
o vento de Outono agita-se no horizonte.
Uma agitação longínua aproxima-se
com a sua tromba de sombra e infortúnio.
Nas pupilas arde um súbito soluçar,
e a melancolia, ainda que vencida, pugna
por surgir novamente com a sede do que é vivo.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 55

INDÍCIOS DE CRUELDADE


Somente que na crueldade a morte sorri-nos
com a sua primeira rosa queimada entre os dedos.


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 54

O CEGO

«(...)

Aqui, ouvindo as paredes da minha sepultura,
falo continuamente com os meus mortos.
Sinto na escuridão o soar dos seus passos,
os meus vacilantes passos, no negro deserto.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 53

JAULAS

noite simplifica a derrota.
Calada sensação de hirta medula
no hostil fastio do relento.
Os instantes são jaulas fechadas
que escondem as memórias guardadas.
Não compreende a enorme deterioração
que foi transformando a sua existência.
Lenta maturação até à morte.
Recebida esta velhice fustigadora.
Lição constantemente exercitada
da lucidez da consciência.
A quem há-de servir esta renúncia,
esta ânsia que labora e que resiste
à miséria das suas reencarnações?




Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 52

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

TEMPO DE BAIXA-MAR


«Apaga-se a certeza de me ter enganado
em tudo o que mais amei e em tudo aquilo
onde pude enraizar-me plenamente.
Tempo de baixa-mar, cuja ondulação
perdeu o seu feitiço entre as rochas.
Em que se deve apostar na vida quando a vida é só
a saudade que aproxima o tédio de estar morto?»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 51

''indómita ondulação''

''húmido uivo da lua''

NA FECHADA CELA DE PAPEL


«Já não quer insistir porque sabe que o amado
há-de ser, rapidamente, a imagem da dor.
E sonha, consola-se com maltratadas memórias
na fechada cela de papel.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 43

CRUEL TESTEMUNHO

O vento da dor,
cegando-lhe os olhos,
agitado areal que se move
insone e sem perguntas.
A sua indiferença cala,
enche de sombria luz
o sonolento abraço
de uma cruel desmemória,
ali, onde se extinguem
latidos e desejos,
o vínculo impossível
que faz mover o mundo.
E aperta-se na sua cabeça
uma garra de pedra,
irrespirável boçal,
arduamente enquistados
no longo horizonte
das horas, fazendo-o descer
à sua perversa prisão.
E uma voz, a mais verdadeiramente sua,
sobre outras se amotina,
com o seu nome de fogo,
eleva-o, reclama-o.
E continua e não se rende,
um dia e outro dia
insiste obstinadamente
mas não para viver,
somente para dar
o seu cruel testemunho.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 41

«as palavras também não são palavras,
nem sequer se arriscam a serem lágrimas,»

Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 39
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