Mostrar mensagens com a etiqueta Iosif Brodskii. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Iosif Brodskii. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Paisagem com inundação

Uma paisagem absolutamente canónica, melhorada pela inundação.
Apenas se vê o topo das árvores, campanários e cúpulas.
O que se quer dizer assoma à boca suflando pela emoção
e do novelo das palavras apenas se salva 'era'.
Analogamente, o espelho reflecte do veterano a testa e a calvície,
mas não o seu rosto, para não falar dos colhões. Por baixo, a água
leva tudo o que se escreveu e disse. Por cima,
um farrapo de nuvem. E tu de pé no meio da água.
Provavelmente o lugar de acção é algures nos Países Baixos.
antes de serem os diques e as rendas, nomes como De Moll
ou Van Dyke. Ou então na Ásia, nos trópicos, onde estão habituados
à chuva que amacia o solo, só que tu não és arroz.
Vê-se que está a subir há muito, gota a gota, dia após dia, ano após ano,
e que toda esta água doce anseia por novos hectares salgados.
E chegou a altura de pôr a criança aos ombros, como um periscópio,
para avistar o fumo dos navios do inimigo que se aproximam.
 
1993
 
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.237
«Um dia estes anos serão
vistos como uma laje de mármore
raiado de veias (...) »
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.233

À memória de Clifford Brown

Não é a cor azul, é a cor frio.
É a cor do Atlântico em meados de Fevereiro.
E seja como for que estejas vestido, estás nu,
deitado de costas, num bloco de gelo.
 
Não é um simples bloco de gelo, feito de gelo,
mas o argumento de que todo o calor está ausente.
Está sozinho no oceano, e tu estás em cima dele
sozinho; e o som do trompete é como o mercúrio cadente.
 
Não é uma voz ingénua que arranha no escuro,
mas os dedos gelados em ré maior, sem luvas;
e uma gota de chuva cintilante eleva-se para o zénite,
para observar do alto o espaço por essa retina.
 
Não é uma simples retina, é um brocado faiscante,
uma nova língua musical feita de riscas e estrelas. O gelo
não se funde, tal um foco de luz errando
para a escuridão dos bastidores onde se esconde o pólo.
 
 
Fevereiro de 1993
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.225

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ode ao cimento

Tu sobreviver-me-ás, meu bom e velho cimento,
como eu sobrevivi, parece, a alguns homens que
me tomaram, também, por uma espécie de arruamento
e citavam a cor dos olhos, ou o semblante.
 
Por isso, não por inveja, mas porque somos parentes,
gabo o teu inanimado, poroso aspecto
-menos duradouro, padecendo de juntas trementes,
mas mesmo assim grato ao arquitecto.
 
Aplaudo-te as origens humildes - insignificantes,
melhor dito - o rugido selvagem, o grasnido hiante
que uma finalidade abstracta no entanto combina
perfeitamente e está fora do meu alcance.
 
Não porque o igual reproduza o igual,
mas porque o futuro prefere acorrer a um
encontro absolutamente imprevisível
e se envolve em longo e petrificante manto.
 
1995
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.209

domingo, 31 de outubro de 2010

***

M.B
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
1989
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63


Exortação

IV
 
Nas montanhas, avança lentamente. Se tiveres de rastejar, rasteja.
Majestosas ao longe, insignificantes ao perto para quem as veja,
as montanhas são a forma que uma superfície posta ao alto tem
e o carreiro sinuoso que parece horizontal e se sustém
é de facto vertical. Deitado na montanha, estás
de pé; de pé, estás deitado. O que prova que hás
de cair para seres livre. Assim do medo se triunfa,
e da vertigem do abismo e da embriaguês dos cumes.
 
V
 
Se gritarem ''Ei, tu aí!'', não te dês por achado. Sê surdo e mudo.
Mesmo que saibas a língua, não abras a boca por nada deste mundo.
Faz por não te expores, de perfil ou de frente; de vez em
quando, simplesmente não laves a cara. E quando degolarem
um cão à tua frente com uma serra, não te arrepies. Caso fumes,
apaga o cigarro com uma bisga. Quanto a roupa, veste-te
de cinzento, a cor da terra - sobretudo a de baixo -,
para reduzir a tentação de assim te meterem no caixão.
 
VI
 
Quando no deserto fizeres uma paragem, forma uma seta
com pedras - assim, se acordas de repente, sabes logo por ela
que direcção tomar. De noite, os demónios no deserto
perseguem os viajantes. Quem escuta o seu concerto
pode facilmente perder-se: um passo ao lado e é o além.
Espíritos, fantasmas, demónios, no deserto estão em casa. Também
tu, com os pés enterrados na areia, saberás isto sem errar
quando de ti só a alma for o que restar.
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.47
«(...) ''sem advogar a substituição do Estado por uma biblioteca'', Brodskii acredita na auto-educação, no esforço da apreensão individual do mundo e do conhecimento pela prática da escrita, não só porque talvez os livros tenham sido para ele a melhor coisa que conheceu ao longo duma vida carregada de experiências fora do comum, mas porque escrever e ler livros era a única forma de, ao despertar para a vida adulta com a invasão da Hungria e o esmagamento da revolta pelos tanques soviéticos, garantir para si um espaço onde a mentira, nenhuma mentira penetraria. E como preencheria esse espaço, só a ele caberia saber.
 
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.13
«Para o poeta, escrever poemas e viver são uma e a mesma coisa. ''Se a arte ensina alguma coisa (ao artista, em primeiro lugar), é a singularidade (privatness) da condição humana. Sendo a mais antiga e também a mais literal forma de actividade individual (private enterprise), [a arte] confere ao homem, disso consciente ou inconsciente, um sentido da sua unicidade, de individualidade, de ser à parte - fazendo-o assim passar de animal social a um 'Eu' autónomo. Podem partilhar-se muitas coisas: uma cama, um bocado de pão, convicções, uma amante, mas não um poema, digamos, de Rainer Maria Rilke. (...) um poema (...) dirige-se ao homem a sós, estabelece com ele relações directas, sem quaisquer intermediários.''»


Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.12
Powered By Blogger