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domingo, 4 de dezembro de 2022

Adeus

 

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade

terça-feira, 2 de março de 2021

 Adeus

Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos.

Como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

'' (…) A moda é o Pessoa, coitado: dá para tudo; 

e a culpa é dele, com aquela comovente 

incapacidade para ser ele próprio. 

De nada lhe serviu ter dito e redito

 que a fama era para as actrizes. 

Que vocação de carneiro têm as maiorias: 

não há fúfia universitária ou machão 

fardado que não diga que a pátria 

é a língua ou a puta que os pariu.

 (…) 

Coitado, pensava ter tempo para pôr ordem 

na arca, mas a morte veio antes da hora. ''


Eugénio de Andrade, “A Vitorino Nemésio, alguns anos depois”, 1983 (Ostinato Rigore/ Epitáfios, 1984)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

O SILÊNCIO

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,


pelo silêncio fascinadas


Eugénio de Andrade

sábado, 13 de junho de 2020

 “Há muito que são velhas, vestidas / de preto até à alma. / Contra o muro / defendem-se do sol de pedra; / ao lume / furtam-se ao frio do mundo. / Ainda têm nome? Ninguém / pergunta, ninguém responde. / A língua, pedra também”

Eugénio de Andrade
 “Estás sentada no jardim / as mãos no regaço cheias de doçura, / os olhos pousados nas últimas rosas / dos grandes e calmos dias de setembro.''

Eugénio de Andrade

As Mães

Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. (p. 95)

Eugénio de Andrade

“o pastor, a criança e a mulher de negro”

O artista plástico Jorge Pinheiro, numa conversa informal com Eugénio de Andrade, perguntou-lhe quais eram os seus “fantasmas”. Desassombradamente, o poeta respondeu: “o pastor, a criança e a mulher de negro”.

segunda-feira, 9 de março de 2020

''Levar-te à boca,''

Eugénio de Andrade

domingo, 17 de novembro de 2019

«Aproximou-se da janela, a luz era ainda amarga naquele fim de Março. O rio lá ao fundo ia frio, apesar disso as águas chamavam-no. É a música inominável da poesia, pensou, um dia terei de responder àquele apelo»

Eugénio de Andrade

'' caminhos da sede''

Do poema Canção do Passeio Alegre do livro Os Lugares do Lume:

 «No inverno o vento está como deus/ em toda a parte: na cabeleira/ verde dos cometas, no extenso/ e turbulento sono dos rapazes,/ nos cegos fundamentos da alegria./ Peço-lhe que tenha piedade,/ que seja amável com os que não dormem/ debaixo de telha, que sorria a quem/ regressa a casa a desoras – a boca/ amarga do fermento da tristeza./ À semelhança de deus, o vento/ dança indiferente nas areias»

Eugénio de Andrade
Do poema XVI do livro As Mãos e os Frutos:

«Da cor do feno, as tuas mãos completas/ erguem-se abertas e pedindo/ a não sei que deus o seu destino/ de cavalo indomável como um rio;/ suspensas, as aves bebem o teu grito/ e ficam cegas a tremer de frio»

Eugénio de Andrade

domingo, 3 de novembro de 2019

 «somos folhas breves onde dormem/ aves de sombra e solidão./ Somos só folhas e o seu rumor./ Inseguros, incapazes de ser flor,/ até a brisa nos perturba e faz tremer»

ANDRADE – Poesia, p. 28
«O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre a luz e a sombra, presença e ausência, plenitude e carência. Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho – e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma – é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado. “O futuro do homem é o homem”, estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos longe de conhecer, é o fruto de uma desconfiguração – acção de uma cultura mais interessada em ocultar ao homem o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa “cantar no suplício” é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior ao outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma»

ANDRADE – Poesia e Prosa, p. 109-110.

«Entramos numa floresta de enganos, o que parece não é, e o que é não parece. »

''ramo de frésias''

Os Sulcos da Sede.

«Mãe, já nada nos separa. /Na tua mão me levas, / uma vez mais, / ao bosque onde me sento / à tua sombra»

ANDRADE – Poesia, p. 89

''Um amanhecer de pássaros''

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