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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022


pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória… amas
ou finges morrer


pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas


é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves


já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

**********

escrevo-te
pelo corpo sinto um arrepio uma vertigem
que me enche o coração de ausência pavor e saudade
teu rosto é semelhante à noite
a espantosa noite do teu rosto!
corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te por que parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer
como quando me tocaste na testa e eu não pude reconhecer-te
apesar de tudo senti a mão sábia que era a tua mão
mas não podia reconhecer-te
sim
correr a cidade procurar-te mesmo que me afastasses
mesmo que nem me olhasses
mesmo que dissesses coisas que me
mesmo que
e ter a certeza de que serias tu depois a procurar-me.

**********

A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Visita-me Enquanto não Envelheço



visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

domingo, 27 de novembro de 2022



Al Berto
in “O Medo” (ed. Assírio & Alvim)
(excerto)
 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

 Este Não-Futuro que a Gente Vive


Será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive? (...) Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. (...) Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros. 

Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)"

domingo, 26 de agosto de 2018

TRUQUE DO MEU AMIGO DA RUA

   ao acaso encontrei-me encostado a uma esquina
   olhar vazio varrendo a multidão, parei
   sorri e tu vieste, fomos andando
   os ombros tocavam-se, em direcção a casa

   pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me
   ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo sujo de
cidade e de engates
   sujo pelos dias e noites e mais dias que não te tive
   esperei-te deitado, outro cigarro
   e ainda espero...
   ...gosto dos corpos que riem, frescos
   rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo
   húmido da boca, que sempre percorre e descobre...

   tacteio-te de alto a baixo
   reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no
escuro
   contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te
    e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via...

    ...sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria
pelo chão
    manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas,
blusão cheio de auto-colantes, peúgas encortiçadas pelo suor
as cuecas rotas, sujas de merda...

e tuas mãos, recordo-me
sobretudo de tuas mãos imensas sobre as coxas
teu corpo nu, à beira da cama, em sossegado sono...


Al Berto. Trabalhos do Olhar. Contexto Editora, p. 32

AUTO-RETRATO COM REVÓLVER

as palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos
o texto transparece na claridade das manchas de tinta
...teço a ausência dum corpo que me é absolutamente ne-
cessário, doem-me estes gestos
estas coisas cobertas de pó sobre a mesa: papéis amar-
rotados, fotografias, cartas interrompidas, objectos quebrados,
sinais ténues de gordura e de fundos de chávena
   lápis, cigarros esboroados, o revólver


  num dos cantos inacessíveis da casa, as aranhas vão cons-
truindo ninhos diáfanos
  segregam sábios labirintos em perigosa baba...
  ...sinto-me vazio, hoje
  a compreensão do mundo escapa-me, pouco me importo
com isso
  está tudo mais calmo, em redor da casa, o jardim quieto
  poderia passar o dia a ler, por desfastio, à maneira dos
príncipes persas
  a tarde torna as madeiras rubras, aquece
  os livros parecem de pedra em seu arrumo cauteloso

  ...ao alcance está o revólver
  perto da mão que nunca aprendeu a escrever, aquece ao
simples contacto dos dedos
   a outra mão, a direita, definhou um pouco quando aprendeu
o silencioso ofício...

  eu explico: hoje deve ser domingo
  e a mão esquerda masturba enquanto a direita escreve com
destreza, sem cessar
  ...mais tarde, escrevia eu
  poderiam as mãos trocar de ofício
  o revólver tingir-se-ia de tinta permanente, o papel apresen-
taria o terrível sulco de uma bala...

Al Berto. Trabalhos do Olhar. Contexto Editora, p. 25

sábado, 25 de agosto de 2018


«não possuo a morte no coração, mas sim pouco de
chuva  que lentamente apaga o fogo doutros dias mais simples»


Al Berto. Trabalhos do Olhar. Contexto Editora, p. 13

quinta-feira, 15 de junho de 2017


“eis-me acordado/ com o pouco que me sobejou da juventude nas mãos/ estas fotografias onde cruzei os dias/ sem me deter/ e por detrás de cada máscara desperta/ a morte de quem partiu e se mantém vivo.”

Al Berto

“o último habitante do lado mitológico das cidades”

Al Berto
“Depois de uma noite agitada, um escaravelho terrível acorda metamorfoseado no autor destas linhas”, escreveu Al Berto

domingo, 15 de novembro de 2015


"lábios ressuscitou a luminescente abelha de uma lágrima. comoveu-se, quando a criança, assustada, lhe perguntou:
- em que idade do coração se apaga o riso dos homens?
regressava de um corpo onde"
...
-"O Medo"
- Al Berto


quarta-feira, 22 de abril de 2015

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A FLUTUAR

"há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão"

-"O Medo"
- Al Berto 

domingo, 26 de janeiro de 2014

quarta-feira, 23 de março de 2011

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

II.

não consigo dormir, nunca mais.
ando de um lado para o outro. canso o corpo,
enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.

lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam
a casa, mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísce-
ras, esta hiena que me devora o sonho.
pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de
mim - vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das
cidades.
sei, nesse instante, que nenhum abraço chega para
atenuar a dor da separação.
afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar a
vida um do outro.

o que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
harrar, aden, lisboa, este silêncio...capaz de ordenar
e desordenar o mundo, o canto sublime das miragens.
mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias come-
ça a zumbir à roda da cabeça.

abri a janela.
avisto uma nesga de céu limpo.
lembro-me de quando tocava um sorriso por um
verso, ou por um insulto.
imitávamos assim a felicidade.

o sol fulmina a memória. limpa-a da crueldade do
passado.
a vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gar-
galhadas, ideias que se evaporam lentamente.
enfim, o mundo não é assim tão grande...

e a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se
com dificuldade.
mas estou cansado.
os olhos fecham-se-me com o peso das paixões des-
feitas.
imagens, imagens que se colam ao interior das pál-
pebras - imagens de neve e de miséria, de cidades obsessi-
vas, de fome, de violência, de sangue, de aquedutos, de
esperma, de barcos, de comboios, de gritos...talvez...tal-
vez uma voz.


Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 66/7

II morte de rimbaud dita em voz alta no coliseu de lisboa a 20 de novembro de 1996

(...)

« de nada me serviria inventar outra vez o rio das pala-
vras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cris-
tais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.
fico assim, inerte, à beira da noite...olhando o bri-
lho da lua jorrando águas.

o regresso nunca foi possível.
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar.
reduz os continentes a distâncias mentais.
aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as cons-
telações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.

pressinto uma sombra a envolver-me. ouço músi-
cas...espirais de som subindo aos subúrdios da alma.
e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não
foi inventado, e renego a alegria.
não semearei o meu desgosto, por onde passar.
nem as minhas traições.



Al Berto. Horto de Incêndio. Assírio & Alvim. 3ª ed., 2000, Lisboa., p. 65
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