terça-feira, 31 de outubro de 2017

Ensaio psicanalítico sobre o ciúme: o ciúme e a música popular

Ver texto aqui.

Eu vi com os meus olhos e observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia, sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite.
(Santo Agostinho)[2]

RESUMO
Este ensaio apresenta um diálogo entre a visão psicanalítica do ciúme e como ele é expresso na cultura em vários tempos e lugares, com especial ênfase na música popular brasileira. Também discute a tênue fronteira que separa ciúme, inveja e avidez, apoiando-se em clássicos da psicanálise e do teatro, mostrando como esses fenômenos são cantados e representados pelo imaginário social.  Em sua análise, o autor mostra ainda como o ciúme é estruturante da psique humana e como está na origem do amor.
Palavras-chave: Ciúme; inveja; psicanálise; música popular brasileira 


Inicio este ensaio com a composição Gota d’água, por expressar o ciúme na sua forma mais extremada. De Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes, é tema da versão brasileira da peça teatral Medeia, adaptada em 1975 por Oduvaldo Vianna Filho.[3]

Já lhe dei meu corpo, minha alegria, já estanquei meu sangue quando fervia;/Olha a voz que me resta, olha a veia que salta, olha a gota que falta, pro desfecho da festa, por favor,/Deixe em paz meu coração/Que ele é um pote até aqui de mágoa/E qualquer desatenção faça não/Pode ser a gota d’água/Pode ser a gota d’água/Pode ser a gota d’água.

Clássico do teatro grego, Medeia, de Eurípedes (413 a.C.), retrata a tragédia de ciúme da mulher abandonada por seu marido, Jasão, a quem Medeia muito havia ajudado em difíceis tarefas. Jasão tinha ido a Cólquida para obter o “velo de ouro”[4]. Ao chegar a Corinto ele, já casado, apaixona-se pela filha do rei Creonte e abandona Medeia, que, humilhada e desconsolada, elimina a rival e seu pai com seus poderes mágicos e, além disso, mata os próprios filhos. Não poderia haver vingança maior do que a de tirar do homem, objeto de seu ciúme, a sua descendência.
A peça aborda o ciúme como avassalador tormento de alma que, revelando-se sentimento atemporal, retrata, tanto na versão grega quanto na brasileira, a angústia de mulheres possuídas pelo extremo do ciúme, em sua forma trágica.
Mais do que uma alegoria, Medeia guarda uma atemporalidade, expressa nos vários casos de filicídio no mundo contemporâneo. Como exemplo, temos o caso de um homem londrino, P.W., que, ciente de que a ex-mulher estava namorando on-line, tem um acesso de ciúme e estrangula os dois filhos com o cabo do computador, tentando, em seguida, matar-se com uma overdose de medicamentos. Foi condenado a 28 anos de prisão. Aqui no Brasil podemos citar o exemplo do comentado caso N., em que a madrasta e o pai foram acusados do homicídio de uma criança. Não se trata de exemplos isolados nem raros. Filicídios, sejam pelo pai, seja pela mãe, causados por ciúmes, povoam as páginas policiais dos mais diferentes países. No caso do filicídio praticado por Medeia na tragédia grega, o ciúme atinge os limites do pensável.
Felizmente, porém, o ciúme pode se expressar nos mais variados matizes, do extremo mais horrendo da tragédia ao ciúme “como perfume do amor”, como cantou Vinicius de Moraes em uma de suas canções. Essa dimensão do ciúme faz evocar a origem da palavra. Ciúme deriva do latim zelumen, evoluindo para “zelo” em português, e, segundo Valdemiro Rodrigues (1953), ciúme inspira-se na palavra “cio” (dos animais), significando “zelo de amor”. Nesta música também aparece a ideia do ciúme como “um mal de raiz”:

Vire esta folha do livro e se esqueça de mim/Finja que o amor acabou e se esqueça de mim/Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz/E que ter medo de amar não faz ninguém feliz/Agora vá sua vida como você quer/Porém não se surpreenda se uma outra mulher/Nascer de mim, como no deserto uma flor/E compreender que o ciúme é o perfume do amor (Medo de amar, Vinicius de Moraes).

No entanto, Paul-Laurent Assoun (2011)[5] chama a atenção para o fato de que a palavra alemã utilizada por Freud para designar o ciúme é Eifersucht, que designa literalmente “o medo apaixonado, excitado, de perder o amor de alguém ou de ter que dividi-lo” (Assoun, 2001, p. 9). E também “o temor de ter que renunciar a alguma coisa que poderia gerar benefícios ou direito, o que implica a defesa ciumenta” (ibidem, p. 9). O termo Eifersucht seria composto de duas partículas: eifer, que designa o zelo, e sucht, que se refere ao movimento passional com “conotação patológica, espécie de paixão mórbida” (Freud, 1897, citado por Assoun, 2011, p. 9).
Sucht é, assim, um vocábulo que designa “uma necessidade crescente doentia, a ponto de se empregar esse termo como sinônimo de adição” (Assoun, 2011, p. 9). Nessa concepção, sucht refere-se a uma necessidade que visa a se satisfazer intensamente, de maneira a buscar o objeto suscetível de provocar a satisfação dessa necessidade imperiosa, aumentando em força, de tal maneira que adquire uma dimensão invasora e patológica. O termo freudiano sucht marcaria a dimensão da apetência pulsional (wunsch, verlangen) polarizada sobre um objeto eletivo. Dessa forma, o termo se assemelharia semanticamente a rivalidade. Além disso, o adicto tem, de fato, uma relação possessiva e ciumenta com seu tóxico.
Dizer Eifersucht é, portanto, situar o ciúme no registro “aditivo – da dependência mórbida (sucht)” (Assoun, 2011, p. 10). O ciumento apresentaria uma “forma de zelo – intempestivo – em relação ao objeto de sua chama. Ele não o larga um milímetro sequer e organiza todos os seus atos e preocupações em torno dele, sob o modo conjugado de atração e de ressentimento” (ibidem, p. 10).
Em outra abordagem, Freud (1922, p. 271) apresenta o ciúme como a “chave da vida psíquica normal e patológica”, dizendo:

O ciúme é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente (Freud, 1922, p. 271).

 O ciúme faria parte da estrutura psíquica do sujeito, organizada a partir da experiência dos ciúmes infantis.
Na perspectiva freudiana, há o ciúme “normal” ou competitivo, o ciúme projetivo – que faz com que o sujeito atribua ao parceiro ou parceira seus próprios desejos de infidelidade – e o ciúme delirante articulado à paranoia (Freud, 1922).
O ciúme “normal” seria composto de pesar, dor e sofrimento, decorrentes de pensamentos que envolvem a perda do objeto amado e da ferida narcísica dos sentimentos hostis dirigidos contra “o rival bem-sucedido e de maior ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito” (ibidem, p. 271).
Embora considerado “normal”, não se trata de um ciúme derivado de uma situação real e nem que esteja sob o controle completo do ego consciente. É um ciúme que se encontra profundamente enraizado no inconsciente. Por ser uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança, origina-se do complexo de Édipo do primeiro período sexual (Freud, 1922).
O “ciúme normal” estaria presente tanto na estruturação e descoberta do eu como na percepção do outro. Lacan (1981, p. 47) diz que “o eu constitui-se ao mesmo tempo que o outrem no drama do ciúme”. Para ele, “o sujeito é uma discordância que intervém na satisfação especular devido à tendência que esta sugere. Ela implica a introdução de um terceiro objeto, que, na confusão afetiva como na ambiguidade especular, substitui a concorrência de uma situação triangular”.
Em interessante comentário, Assoun (2011) ressalta também que Lacan devolve a contribuição freudiana para uma metapsicologia do ciúme, retomando ainda a questão da posição estruturante deste a partir de sua função especular, bem como de sua oscilação simbólica.
Já o ciúme projetivo é apresentado por Freud (1922, p. 272) como aquele que deriva, tanto nos homens quanto nas mulheres, “da própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos que sucumbiram à repressão”. O ciúme decorrente de tal projeção, embora possuindo “um caráter quase delirante”, é mais acessível ao trabalho analítico pela exposição das fantasias inconscientes da própria infidelidade do sujeito (ibidem, p. 293).
O terceiro tipo de ciúme, o delirante propriamente dito, embora também tenha sua origem em impulsos reprimidos no que tange à infidelidade, nele o objeto é do mesmo sexo do sujeito.
Podemos depreender da perspectiva psicanalítica que o amor começa pelo ciúme. O ciúme estaria ligado ao sentimento de amor, ao sentimento de insegurança, no qual explode com a necessidade que se tem do objeto amado. Em carta a Ludwig Binswanger, Freud (1920, citado por Assoun, 2011, p. 5) diz que “é o ciúme que parece poder nos dar a compreensão mais profunda da vida psíquica, tanto normal como patológica”.
Para o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914–1974), comparado por Augusto de Campos a Nelson Rodrigues na coragem de desnudar os sentimentos dos brasileiros, nem “as pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração” estão isentas do ciúme. Vejamos o que ele diz no samba “Nervos de aço”:

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar este amor, meu senhor/Nos braços de um outro qualquer/Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/E por ele quase morrer/E depois encontrá-lo em um braço/Que nem um pedaço do seu pode ser/Há pessoas de nervos de aço/Sem sangue nas veias e sem coração/Mas não sei se passando o que eu passo/Talvez não lhe venha qualquer reação/Eu não sei se o que trago no peito/É ciúme, despeito, amizade ou horror/Eu só sei é que quando a vejo/Me dá um desejo de morte ou de dor.

Para o saudoso radialista Luis Carlos Saroldi, Lupicínio Rodrigues teria conseguido formular como ninguém o que se poderia chamar, parodiando requintada terminologia sartriana, de sentimento de “cornitude”. E é exatamente esse ingrediente o responsável pelo sucesso estrondoso de Nervos de aço em 1947, revisitado trinta anos depois por Paulinho da Viola.
Mas a descrição do ciúme como “um desejo de morte ou de dor” vai reaparecer, sob outras palavras e melodia, no samba-canção que chegou ao sucesso em 1951 na voz de Linda Batista e que se tornou um modelo do gênero conhecido como música de fossa ou dor-de-cotovelo[6].

Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram/Que te encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar/E que quando os amigos do peito por mim perguntaram/Um soluço cortou sua voz não lhe deixou falar/Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram/Que tive mesmo de fazer esforço pra ninguém notar/O remorso talvez seja a causa do seu desespero/Você deve estar bem consciente do que praticou/Me fazer passar tanta vergonha com um companheiro/E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou/Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada/Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar/Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/Sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar (Vingança, Lupicínio Rodrigues)

Arrigo Barnabé disse:

Não acredito em nada que não tenha angústia, isso talvez é o que mais me atrai nas canções de Lupicínio, e também a raiva, gosto muito de trabalhar com a raiva, a revolta. Nele tudo é verdadeiro, e raiva e angústia é meio difícil fingir. Por essa observação penetrante do ser humano nas situações limites da dor amorosa, por este humor que permeia as canções, um humor voltado para a ironia e o sarcasmo, por tudo isso estava atravessada a vontade de cantar Lupicínio (Barnabé, 2010/2011).

O ciúme é sentimento presente em crianças e adultos. Mas também entre irmãos, ou mesmo filhos que brigam pelo amor de um dos pais. Podemos considerar inaugural do ciúme e da inveja humanos a história bíblica de Caim e Abel, respectivamente, o primeiro e o segundo filho de Adão e Eva. Caim lavrava a terra enquanto Abel pastoreava ovelhas. Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor, e Abel também trouxe (a sua oferta) das suas ovelhas. O Senhor valorizou a oferta de Abel, o que não expressou em relação a Caim. Este, irado, sentindo-se desvalorizado e enciumado, matou o irmão.

E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e errante serás na terra (Bíblia Sagrada, Gênesis 4.12,13 ).

Também podemos ver o ciúme retratado entre habitantes de duas cidades, como Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na Bahia. Na música O ciúme, Caetano Veloso aborda de forma poética este sentimento entre os habitantes de duas cidades separadas por uma ponte sobre o rio São Francisco – o “velho Chico” –, objeto do ciúme:

Dorme o sol à flor do Chico meio-dia/Tudo esbarra embriagado de seu lume/Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/Só vigia um ponto negro o meu ciúme/O ciúme lançou sua flecha preta/E se viu ferido justo na garganta/Quem nem alegre nem triste nem poeta/Entre Petrolina e Juazeiro canta/Velho Chico vens de Minas/De onde o oculto do mistério se escondeu/Sei que o levas todo em ti, não me ensinas/E eu sou só eu só eu só eu/Juazeiro, nem te lembras desta tarde/Petrolina, nem chegaste a perceber/Mas na voz que canta tudo ainda arde/Tudo é perda tudo quer buscar cadê/Tanta gente canta tanta gente cala/Tantas almas esticadas no curtume/Sobre toda estrada sobre toda sala/Paira monstruosa a sombra do ciúme.

Afinal, qual a origem do ciúme? O ciúme se origina nas relações precoces da infância humana, no instante fundamental da vida, em que dependemos do amor materno para sobreviver. É por isso que toda relação amorosa contém, na sua origem, um sentimento de posse e pretende ser única e exclusiva. Portanto, quanto melhor elaboramos ou simbolizamos a perda dessa dependência infantil, mais autônomos conseguimos ser e menos ciúme vamos sentir.
Segundo Lacan (1981, p. 48), “a observação experimental da criança e as investigações psicanalíticas, demonstrando a estrutura do ciúme infantil, trouxeram à luz do dia o seu papel na gênese da sociabilidade e, simultaneamente, do próprio conhecimento enquanto humano”. Essas pesquisas teriam revelado que o ciúme representa não só uma rivalidade vital, mas também uma identificação mental.
O ciúme infantil é evocado por Lacan (1981), quando cita Santo Agostinho: “Eu vi com os meus olhos e observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia, sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite”.
A prematuração do ser humano ao nascer é importante para a compreensão do ciúme e da inveja. Diferente dos outros animais, o pequeno humano nasce prematuro, antes da completa mielinização do sistema nervoso, e, consequentemente, num extremo estado de dependência. Se observarmos outros animais, veremos que logo após o nascimento eles ficam de pé e buscam se alimentar de maneira ativa. Já o pequeno humano, devido ao seu estado de total dependência, vive uma experiência inicial na qual a construção do eu será calcada numa relação dual com a mãe como espelho propiciador de uma primeira identificação, em que o olhar da mãe vai funcionar como o lago para o pequeno Narciso. É por essa época que a criança começa a vivenciar a mãe como todo-poderosa, objeto de inveja, e vai ansiar para si esse poder percebido. É interessante notar que o termo inveja origina-se de videre – verDaí a origem das expressões “olho gordo”, “mau-olhado”, “olho de seca-pimenteira”, etc.
Elliot Jaques, citado por Melanie Klein (1968, p. 18)[7], chama a atenção para a raiz etimológica da palavra inveja: “do latim invidia, que deriva do verbo invideo – olhar alguém atravessado, considerá-lo com desconfiança ou rancor, jogar-lhe o mau-olhado, invejar ou guardar rancor de alguém”. Ele ilustra seu comentário utilizando a frase de Cícero: “provocar uma infelicidade por um mau-olhado”.
Embora universal, o ciúme está longe de ser visto como natural, pois, atravessando as relações afetivas, evoca os mais diversos sentimentos.
No artigo “Ciúme e traição: reflexões antropológicas”, a antropóloga Mirian Goldenberg apresenta interessantes dados de 1996 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de homens e mulheres das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, que evidenciaram que, embora o ciúme e a infidelidade consistam em um dos principais problemas vividos nos relacionamentos amorosos, homens e mulheres apresentavam um discurso paradoxal, no qual, de um lado, há a exigência de privacidade, independência e autonomia e, de outro, de “sinceridade absoluta”, cumplicidade e complementaridade.
A autora indaga: como conciliar o não conciliável? Como fazer dialogar “sinceridade absoluta e cumplicidade com respeito à privacidade e à individualidade?” Como combinar o sentimento de posse contido num relacionamento amoroso e o desejo de preservação dos espaços individuais?
Há um paradoxo importante que se deve levar em consideração: enquanto a sexualidade humana é naturalmente poligâmica, a sociedade em que vivemos é monogâmica. Ou seja: a natureza é poligâmica e a nossa sociedade é monogâmica. Nossa cultura tenta resolver essa contradição. A fidelidade, então, não é natural, mas uma tomada de posição, derivando de uma escolha absolutamente racional.

De noite eu rondo a cidade/a te procurar hei de encontrar/No meio de olhares espio/em todos os bares você não está/Volto pra casa abatida/desencantada da vida/O sonho alegria me dá/Nele você está/Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse/este alguém me diria/Desiste esta busca é inútil eu não desistia/Porém com perfeita paciência volto a te buscar hei de encontrar/Bebendo com outras mulheres/rolando dadinho jogando bilhar/E neste dia então/Vai dar na primeira edição/Cena de sangue num bar na avenida São João (Ronda, Paulo Vanzolini).

Uma das características humanas, diz Freud em Totem e tabu (1913), é desejar o que é proibido. Daí a proibição ser um elemento importante para fazer ressurgir o desejo. Esse gosto pelo proibido justifica a necessidade de criar um mandamento como o nono, que ordena “não desejar a mulher do próximo”. A existência desse mandamento revela que o desejo existe no humano e carece de interdição. Essas interdições se impõem na cultura, revelando-se muitas vezes adequadas, ao possibilitar o apaziguamento das pulsões. Na ausência desse apaziguamento, há o possível aparecimento de patologias e, neste sentido, diferentemente das religiões, a psicanálise propõe soluções singulares.
Não sendo possível desvincular o ciúme do adulto do ciúme da criança, ou seja, do ciúme compreendido como uma estrutura do psiquismo humano, haverá sempre uma raiz infantil no ciúme do adulto.
Uma música do repertório popular que nos evoca a imagem de um ciúme adulto com suas raízes infantis é Lábios que beijei, composição de J. Cascata e Leonel Azevedo, um dos maiores sucessos da brilhante carreira de Orlando Silva, gravada em 1937:

Lábios que beijei, mãos que afaguei/Numa noite de luar assim/O mar no céu bramia/E o vento a soluçar pedia/Que fosses sincera para mim/Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os braços de um outro amor/Eu fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua perenal da dor/Passo as noites soluçando com meu pinho/Carpindo a minha dor sozinho/Sem esperanças de vê-la jamais/Deus tem compaixão deste infeliz/Por que sofrer assim?/Compadecei-vos dos meus ais/Tua imagem permanece imaculada/Em minha retina cansada/De chorar por teu amor/Lábios que beijei/Mãos que afaguei/Volta dá lenitivo à minha dor.

Para compreendermos o ciúme no adulto, faz-se necessário compreendermos o ciúme na criança. O ciúme na criança nos remete, inevitavelmente, como já vimos, à sua dimensão estruturante. O ciúme ocorre na passagem da relação dual com a mãe para a ocupação do lugar de filho na relação triangular edípica – no momento marcado pelo medo de perder para outro o seu objeto de completude, de amor primário.
É no estabelecimento da introdução da função paterna que será definida a estrutura do ciúme, originada dos amores infantis. O ciúme nasce no momento denominado por Freud de complexo de Édipo, havendo, portanto, uma profunda ligação entre o ciúme do adulto e o ciúme da criança.
Assim, supõe-se que a vivência imaginária da criança de que foi traída pela mãe com o pai vai abalar a fantasia de onipotência infantil. Embora constitutivos do humano, inveja e ciúme nascem em momentos distintos, sendo a inveja anterior ao ciúme.
Como vimos, o estado de dependência do humano ao nascer o faz experienciar a mãe numa não diferença, em que ele é ao mesmo tempo um outro e si mesmo, num movimento de fusão-desfusão. Ela é vivenciada como aquela capaz de preencher-lhe as faltas e necessidades, levando-o ao sentimento de inveja. Por conseguinte, o bebê vai “perceber” a mãe como todo-poderosa, não diferenciada de si, estando ele ainda indiscriminado. Neste sentido, a inveja é uma experiência narcísica, própria a todos os bebês humanos, anterior à aquisição do sentimento de alteridade e, poderíamos dizer, contemporânea da primeira experiência de satisfação.
O ciúme, contemporâneo do complexo de Édipo, envolve uma relação com o outro. Já a inveja se refere à relação do indivíduo com uma só pessoa, remontando à mais primitiva relação exclusiva com a mãe. Ela decorre da relação de total dependência do bebê com a mãe, sendo esta a fonte de todo o amor. É nessa experiência precoce que ocorrem as marcas de formação tanto da inveja como do ciúme.
Klein (1968) estabelece importante distinção entre a inveja, o ciúme e a avidez. Para ela, a inveja seria o sentimento de cólera que invade um sujeito quando este teme que um outro possua alguma coisa de desejável e que dela goze. Dessa forma, “a impulsão invejosa tende a apoderar-se deste objeto ou a estragá-lo” (p. 17). Já o ciúme se fundaria sobre a inveja, mas, enquanto esta implica uma relação do sujeito com uma só pessoa e remonta a toda primeira relação exclusiva com a mãe, “o ciúme comporta uma relação com duas pessoas no mínimo e convergiria principalmente ao amor que o sujeito sente como lhe sendo devido e tomado por um rival” (p. 18). Por sua vez, a avidez seria a marca de “um desejo imperioso e insaciável, que vai ao mesmo tempo para além do que o sujeito tem necessidade e além do que o objeto pode ou quer lhe acordar” (idem).

Na dimensão inconsciente, a avidez busca essencialmente esvaziar, exaurir ou devorar o seio materno; ou seja, sua finalidade é uma introjeção destrutiva. A inveja não visa apenas à depredação do seio materno, ela tende, além disso, a introduzir na mãe, antes de tudo em seu seio, tudo o que é mau, e primeiramente excrementos maus e partes más do self, a fim de deteriorá-la e de destruí-la. O que, no sentido mais profundo, significa destruir sua criatividade (Klein, 1968, p. 18).

Klein (1968) conclui afirmando que “inveja e avidez tendem à destruição” – a primeira pela via da projeção e a segunda, de modo mais radical, pela introjeção. Já o ciúme seria vetorizado pela relação amorosa com o outro, ainda que mesclado com uma destrutividade de fundo invejoso.

A inveja dirigida ao seio materno e o aparecimento do ciúme estão diretamente ligados. O ciúme se funda sobre a rivalidade com o pai, suspeito e acusado de ter se apoderado do seio materno e da mãe. Essa rivalidade marca os estádios iniciais do complexo de Édipo positivo e negativo, que aparece normalmente ao mesmo tempo que a posição depressiva no decurso do segundo quarto do primeiro ano (Klein, 1968, p. 40).

Para Assoun (2011), a inveja ciumenta estaria aquém da cena originária, momento em que o bebê, ao ver a mãe se afastar, dá-se conta de sua dor. Essa “dor originária” sinalizaria a inscrição no sujeito de um objeto a perder. Trata-se, segundo Freud (citado por Assoun, 2011) da dor “diante do rosto estranho que vem usurpar o lugar do outro materno procurado pelos olhos” (p. 45). Freud apresenta a cena originária da separação como sendo o momento em que a criança vê a mãe se ir, constituindo o acontecimento mudo, pré-histórico do ciúme.
Portanto, mesmo antes da instauração do ciúme, a dor já estaria presente, marcando a existência de um ciúme ulterior na dialética do aparecimento/desaparecimento. A mãe sabe, então, gerir a situação, brincando de desaparecer, prometendo ao mesmo tempo seu reaparecimento. Mais tarde, porém, a criança fará hipóteses sobre as causas desse vaivém materno, atribuindo-o ao pai, explicando o ciúme que permanece infiltrado de dor, já em sua origem (Assoun, 2011).

O ciúme dói nos cotovelos/Na raiz dos cabelos/Gela a sola dos pés/Faz os músculos ficarem moles/E o estômago vão e sem fome/Dói da flor da pele ao pó do osso/Rói do cóccix até o pescoço/Acende uma luz branca em seu umbigo/Você ama o inimigo/Se torna inimigo do amor/O ciúme dói do leito à margem/Dói pra fora na paisagem/Arde ao sol do fim do dia/Corre pelas veias na ramagem/Atravessa a voz e a melodia (Dor de cotovelo, Caetano Veloso).

Se na música popular brasileira o ciúme foi cantado em diferentes matizes, com relação aos clássicos da literatura talvez a obra mais significativa seja Otelo, de Shakespeare, exemplar quando se trata do ciúme. Se fizermos um resumo da trama, encontraremos: Otelo é o general mouro do reino de Veneza que, por ciúmes e inveja, é vítima de uma armadilha do seu alferes Iago, que se vinga de Otelo porque este promoveu Cássio, jovem soldado florentino e grande intermediário nas relações entre Otelo e Desdêmona, em lugar dele, Iago.
Contrariando o pai, Brabâncio, rico senador de Veneza, Desdêmona se casa com Otelo. Mas a raiva do pai contra o casamento foi minimizada porque Otelo gozava da estima e da confiança do Estado, por ser leal, muito corajoso e ter atitudes nobres.
Iago, que odiava Otelo e Cássio, começou a semear a discórdia: hábil e profundo conhecedor da natureza humana e sempre fazendo reflexões sobre a humanidade, Iago sabia que, de todos os tormentos que afligem a alma, o ciúme é o mais intolerável e incontrolável.
Dando continuidade a seu plano, Iago insinuou a Otelo que Cássio e sua esposa poderiam estar tendo um caso. O plano foi tão bem traçado que Otelo começou a desconfiar de Desdêmona. Depois de várias armadilhas criadas por Iago para fazer Otelo acreditar na traição da esposa, Otelo, em total descontrole, asfixia Desdêmona em seu quarto. Ao saber que matara sua amada injustamente, desesperado apunhalou-se, caindo sobre o corpo da mulher. Otelo morre, beijando a quem tanto amava. Ao fim da tragédia, Cássio passa a ocupar o lugar de Otelo e Iago é entregue às autoridades para ser julgado.
Comentando passagens de Otelo, Klein (1968) ressalta que Shakespeare não parece sempre distinguir a inveja do ciúme. E ilustra sua observação com o seguinte verso: “Oh, senhor, cuidado com o ciúme. É o monstro de olhos verdes que desdenha da carne que o nutre” (ibidem, p. 20).
Klein (1968, p. 19) chama a atenção para o fato de o invejoso ser insaciável, sempre insatisfeito. “Monstro de olhos verdes”, traz a inveja enraizada em si, encontrando facilmente um objeto para o qual dirigi-la, revelando o estreito laço entre ciúme, inveja e avidez.
Ainda segundo Klein (1968), Otelo, dominado pelo ciúme, destrói o objeto que ama, o que caracterizaria “uma paixão ignóbil”.

O ciúme é uma paixão nobre ou ignóbil segundo o objeto. No primeiro caso, ele (o ciúme) se traduz por uma imolação aguçada pelo medo, no segundo, por uma avidez estimulada pelo temor. A inveja é sempre uma paixão vil, provocando as piores paixões na sua esteira (Crabb, citado por Klein, 1968, p. 19).

Segundo o English Synonym, de Crabb, citado por Klein (1968, p. 19), “o ciúme é o temor de perder o que se possui; a inveja é o sofrimento de ver outro possuir o que se deseja para si próprio. (...) O prazer do outro atormenta o invejoso, que só se compraz no infortúnio dos outros”.
Para Klein (1968), a atitude geral em relação ao ciumento difere da relativa ao invejoso. Ela lembra que em certos países, como a França, um crime passional cujo móvel é o ciúme beneficia-se de circunstâncias atenuantes, devido ao fato de a morte de um rival implicar o amor pela pessoa infiel. O que significa, diz ela, “que em nossa terminologia o amor pelo ‘bem’ existe e que o objeto amado não é danificado ou deteriorado como o seria pela inveja” (p. 19).
Já na literatura brasileira uma obra exemplar que retrata o ciúme é o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual é narrada a famosa história da desconfiança que o personagem Bentinho tem de sua mulher, Capitu, achando que esta o traía com o seu melhor amigo, Escobar.
Dom Casmurro é uma obra cuja leitura oferece um leque de possibilidades interpretativas, encontrando no personagem Bento férteis elementos sobre a problemática do ciúme, Édipo e homossexualidade[8]. Seguindo o desejo da mãe, Bento foi criado para ser padre, ingressando no seminário. Essa atitude materna expressava o desejo de conservar o filho preso a ela. Após abandonar o seminário, Bento reencontra Capitu, namoradinha da infância. Sua trajetória de vida, até então alimentada pelo desejo materno, tornou-o um sujeito tristonho, frágil e infantilizado. Embora Capitu amasse Bentinho, percebia que para ele era difícil aceitá-la, uma vez que ela não correspondia à imagem da mãe.
Foi ainda no seminário que Bento conheceu Escobar, desenvolvendo por ele tanta admiração que poderia evocar uma relação amorosa parecendo sexualizada (não sublimada pela amizade), percebida por Capitu, que, em certo momento, indaga quem era aquela pessoa que merecia tanto afeto na forma de se despedir.
Bento acaba se casando com Capitu, tem um filho, mas não consegue assumir a função paterna, pois sua identificação com a figura masculina parecia pouco consistente. A impossibilidade de ocupar essa função o leva a uma atitude bizarra e extremada, a ponto de dizer: “Não é meu filho.” Porque prisioneiro do desejo materno, Bento viu-se na impossibilidade de assumir o lugar de “homem-marido e de homem-pai”, o que poderia explicar sua escolha homossexual inconsciente, responsável pelo ciúme (Freitas, 2004).
À medida que cresce o seu impulso homossexual por Escobar, Bento projeta cada vez mais tal impulso em Capitu, o que intensifica seu ciúme. Como bem lembra Freud (1922, p. 273), “o ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas de paranoia”. Como tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual, ele pode, no homem, ser descrito pela fórmula: “Eu não o amo; é ela que o ama!” (Idem, p. 273).
Seria, então, o “ciúme paranoico” de Bento a expressão também de uma vivência invejosa? Neste caso, poderíamos pensar que tanto Shakespeare com Otelo quanto Machado de Assis com Bento oscilam entre a inveja e o ciúme? Essa oscilação poderia ser expressa na dúvida trazida por Bento quando indaga se foi realmente traído ou se foi seu “ciúme doentio que (...) o fez deturpar a realidade”. O ciúme doentio conteria a inveja?
Face ao afastamento do objeto amoroso, o ciumento vê-se perdido e sem referência, e tenta desesperadamente recuperá-lo no espelho de sua própria imagem que o outro representa. A expressão de um poeta sertanejo anônimo nos canta:

Tas vendo aquela cacimba naquela baixa acolá?/Te fica pro riba dela, espia que tu verá/A cara da tua cara/Lá debaixo a te espiá/Mas se acaso te arretira/Gurugutu, nem sina/Aquilo que fez contigo faz com outro que vier/Tas vendo aquela cacimba?/É o coração da muié [9].

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