sexta-feira, 12 de maio de 2017

A MORTE DO PRÍNCIPE


[PRÍNCIPE] – Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer. Uns são frases que como se erguem do texto a determinar o sentido de todo um capítulo, ou de toda uma intenção, e a esses denominamos génios; outros são simples palavras, contendo uma frase em si mesmas, ou adjectivos definindo grandemente, destacadas aqui ou ali, mas sem dizer o que importa ao conjunto, e são esses os homens de talento; uns são as frases de pergunta e resposta, pelas quais se forma a vida do diálogo, e esses são os homens de acção; outros são frases que aliviam o diálogo, tornando-o lento para depois se sentir mais rápido, pontuações verbais do discurso, e esses são os homens de inteligência. A maioria são as frases feitas, quase iguais umas às outras, sem cor nem relevo, que servem todavia de ligar as intenções das metáforas, de estabelecer a continuidade do discurso, de permitir que os relevos tenham relevo, existindo, aparentemente, só para que esses possam existir. De resto, não somos nós feitos, como a frase, de palavras comuns (e estas de sílabas simples) de substância constante, diversamente misturada, da humanidade vulgar? Não é o nosso amor o amor de todos e o nosso choro as lágrimas em si mesmas? Mas cada um de nós ama e chora ele, que não outro: há um objectivo de dentro que o indefine (dissolve) e determina.
Isto que te estou dizendo é sem dúvida delírio, porque não sei por que te o digo; mas, porque o digo sem saber, é também sem dúvida verdade.
E as figuras de xadrez e as das cartas de jogar ou advinhar — seremos nós mais que elas onde a vida é vida?
Quando eu era menino beijava-me nos espelhos: era um sinal antecipado de que nunca haveria de amar. Tinha por mim, em adivinha de negação, a ternura que me nunca haveria de ser dada.
Por que não será tudo uma verdade inteiramente diferente, sem deuses, nem homens, nem razões? Por que não será tudo qualquer coisa que não podemos sequer conceber, que não concebemos — um mistério de outro mundo inteiramente? Por que não seremos nós — homens, deuses, e mundo — sonhos que alguém sonha, pensamentos que alguém pensa, postos fora sempre do que existe? E por que não será esse alguém que sonha ou pensa alguém que nem sonha nem pensa, súbdito ele mesmo do abismo e da ficção? Por que não será tudo outra-cousa, e cousa nenhuma, e o que não é a única cousa que existe? Em que parte estou que vejo isto como cousa que pode ser? Em que ponte passo que por baixo de mim, que estou tão alto, estão as luzes de todas as cidades do mundo e do outro mundo, e as nuvens das verdades desfeitas que pairam acima e a elas todas buscam, como se buscassem o que se pode cingir?
Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e os rios ao longe, e montanhas... Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou ficar, e de onde estar e de que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra cousa que estou a ver se vejo.
Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora que estou entre o que não fui e o que não serei?
P[RÍNCIPE] – Senta-te ali, aos pés da cama aonde eu quase que te não veja, e fala-me de cousas impossíveis...
Vou morrer.
X – Não, meu Senhor...
P[RÍNCIPE] – Sim, vou... Já tudo começa a ter outro aspecto e a falar aos meus olhos numa outra voz... Parece que não sou eu que estou cansado de existir, mas as cousas que se cansam de eu as ver... Começo a morrer nas cousas... O que se apaga de mim começa a apagar-se no céu, nas árvores, no quarto, nos cortinados deste leito… Depois, pouco a pouco, ir-se-á apagando pelo meu corpo dentro até que fizer (sic) noite mesmo ao pé das janelas da minha alma.
X – Isso é belo de mais para que possais estar perto da morte...
P[RÍNCIPE] – É belo demais para que possa lembrar à vida... A curva dos montes, lá muito ao longe, torna-se, não mais indecisa mas mais indecisa de outra maneira... As árvores esbatem-se em sombras mas as folhas parecem-me extraordinariamente nítidas, evidentes de mais... A seda dos cortinados deste leito é uma outra espécie de seda... Afundo-me pouco a pouco... Não te entristeças... Eu era real de mais para poder reinar algum dia... O único trono que mereço é a morte... Não dizes nada?
X – Senhor, não morrereis...
P[RÍNCIPE] – Sinto um ruído qualquer... Ah, como parece ser o arranjarem-me as vestes para a minha coroação no meu melhor Reino!... Sinto tinir espadas e isso lembra-me o ver cair neve... Lembras-te de antigamente?... Eu era muito pequeno, e quando o silêncio da neve descia sobre a terra, íamo-nos sentar para a lareira do castelo a falar nas cousas que nunca aconteceriam... Quantas princesas amei no futuro que nunca tive!... Lembras-te — não te lembras? — de como eu ficava cansado pelos combates em que nunca havia de entrar...
X – Para vós, Senhor, só havia na vida amanhã. ..
P[RÍNCIPE] – Talvez porque o meu corpo sabia que eu teria que morrer cedo... Mas não era amanhã nunca para mim, era sempre depois de amanhã... Eu sonhava sempre com um futuro que estava sempre um pouco ao lado do futuro que teria...
X – Às vezes eu contava histórias de fadas...
P[RÍNCIPE] – Sim... Eram todas diferentes... Na minha terra toda a gente é igual... Cansa tanto olhar para gente!... Nas festas do palácio havia sempre grupos que segredavam do meu silêncio... Eu via-lho nos olhos... Eu ficava a um canto, sempre não vendo aquilo para que olhava... Via sempre coisas diferentes daqueles entre quem eu estava... Nas salas do palácio, os meus olhos estavam nos bosques e a minha ânsia de estender os braços com a frescura das ervas e a maciez das pétalas e a paisagem das fontes... (...) Eu nunca fui feliz... Quando, nas ameias do meu novo castelo, eu olhar debruçado a confusão pequenina do mundo, eu serei feliz completamente... Talvez nem mesmo assim seja feliz... Mas [sei d'alma] que todo o meu encanto seria estar aonde não estou para de lá poder desejar onde estar...
X – Não serão todos assim?
P[RÍNCIPE] – Quem são todos? Para mim todos são só um... Eu nunca conheci ninguém. Distinguia as pessoas como quem distingue pedras... Nunca me deram a impressão de serem reais, especialmente quando falavam... Diziam todas as mesmas cousas, todas tinham amores e ódios, alegrias e dores, ânsias e cansaços... Se alguma me falava de qualquer cousa, eu, se fechava os olhos, tinha sempre diante de mim o Homem. Não, há em toda a gente uma só pessoa que não existe... Que vago... Que vago...
X – Vago, o quê, meu senhor?
P[RÍNCIPE] – Tudo... O horizonte está muito longe, muito longe... Ainda assim… não sei... não está... Sinto-o muito mais longe, mas não o vejo muito mais longe... Não sei bem o que vejo ou o que sinto... Talvez que as minhas sensações é que me sintam a mim... Parece-me que as cousas é que me sentem e que eu não existo senão porque as cousas me vêem e me sentem... Era bom se assim fosse... Não sei por que seria bom... Talvez por ser outra cousa... Como os reposteiros são estranhos...
X – Estranhos? estranhos, meu senhor?
P[RÍNCIPE] – Demasiadamente ali... Tenho vontade de ter medo de os estar vendo assim... Que estranho, que estranho tudo!... A janela é uma cousa muito outra! Parece saber que vêem através dela... Parece ver também... Parece que ela é que vê as cousas que nós vemos por ela. . . E a almofada, a almofada?
X – Que almofada, senhor? Essa. . .? Não a podeis ver. . .
P[RÍNCIPE] – Esta, esta... Não sei se a vejo... É enorme... Tem toda a extensão da vida!... Mergulho nela como num mar de [sombras juntas] que ainda na minha carne saibam a sonhos... As minhas mãos, ao tocar nas roupas do meu leito, sentem-lhes cousas que antes não lhes poderiam sentir, significações seguras, frescuras, renúncias tímidas de linho... Ah, mas que estranho! mas que estranho! Não sei bem onde estás... As cousas em torno a mim são de tamanhos que não deviam ter... O meu leito é imenso como o repouso de um mendigo... As minhas mãos têm um fulgor a incertas... Como que vejo por dentro os perfis e os contornos das cousas... Não te sei dizer o que sinto... Não te sei dizer o que sinto... Todas as cousas tomam aspectos atentos... Todas as coisas se tornam heráldicas de mistério... Já não há cores... Já não há cores... Ah! o que é isto que as cores são agora?... O que é isto... Não são elas... São sonhos de outras cousas... São aproximações de cousas que vão a chegar à terra do espaço... Devo ter muito medo... Devo ter muito medo...
X – Aquietai-vos, Senhor, aquietai-vos. Heis-de viver... Este fim de dia é tão belo que não pode morrer alguém nele... Vede como os restos do sol são roxos e cinzentos no ocidente! Deveis viver, para viver... Espera-vos o amor e a lida...
P[RÍNCIPE] – Nunca agi certo.
X – Senhor, não penseis nisso...
P[RÍNCIPE] – Tratai-me antes de Senhora... Sou uma princesa de quem se esqueceram quando buscaram rainha... Ah que horror, que horror!
X – Que tendes, Senhor? que tendes?
P[RÍNCIPE] – Oh como tudo está mais estranho ainda! Não há já formas –– oh meu Deus, oh meu Deus — não há já formas... Transbordaram as cousas umas para dentro das outras... No ar há só restos de linhas... Tudo é um fumo de lugares... Poeira, poeira... tudo em poeira... (...) Tudo é cinza de tudo... Tudo é cinza de tudo... Há em mim labirintos de não poder ver... A janela? onde está a janela... É uma coisa que brilha extraordinariamente mas em parte nenhuma do espaço... Tudo é cinzas de um fumo... (...) Onde estás tu? onde estás tu?
X – Aqui, Senhor, aqui!...
P[RÍNCIPE] – Não sei se te não vejo... Não sei o que é que vejo... Já não há cousa nenhuma... (Numa voz lenta e calma) O que é isto tudo? Não sei de que lado está a vida... O espaço está ao contrário… Não me sinto eu no meu mundo... Que estranho! que estranho! Onde é que está dando horas por dentro?... (...) Ah, vejo, vejo... Vejo agora! Vejo agora!
X – Que vedes, Senhor, que vedes? Acalmai, acalmai! Que vedes?
P[RÍNCIPE] – Vejo, vejo... Vejo através das cousas... As cousas escondiam... As cousas não eram senão um véu... Ergue-se o pano, ergue-se o pano do teatro... Tenho medo, tenho medo... Ah vejo, vejo enfim... Vejo enfim tudo... Olhai... Olhai... Agora vejo... Vejo as cousas reais, vejo as cousas que existem... Vede que surgem... (...) Vejo através das cousas como através dos meus olhos... As cidades sonhadas é que eram... reais... As cousas são apenas a visão trémula delas reflectidas nas águas do meu olhar... Só o que nunca se tornou real é que existe realmente... O que acontece é o que Deus deita fora... O que parece não é real, é as costas das mãos de Deus, a Sombra dos seus gestos... As princesas que eu sonhei é que existem... As da terra são apenas as bonecas com que as outras brincam, vestindo-as, corpo e alma, a seu modo...
P[RÍNCIPE] – No além, floresço em corpo e para fora numa roseira com rosas brancas, e para dentro e em alma num outro universo, meu — numa outra paisagem minha. O corpo da minha vida real é uma roseira branca no Além; a alma da minha vida real é um universo interior no Além, um universo de dentro com montes com o perfil da minha ânsia, prados da extensão dos meus desejos.
P[RÍNCIPE] – Oh que horror, que inesperado horror! Que complexo! que complexo! Sou a mesma roseira, mas estou vendo para dentro de mim... Tenho um reino, reino externo que sou eu além, tenho um universo meu — uma terra, uns céus... Vede... vede quem eu sou! Sinto-me roseira no escuro, mas olhando para dentro de mim vejo paisagens... Que paisagens amontoadas... Que contornos vagos! Que mistério estranho! Cada cousa é um universo para dentro... cada cousa no além é um universo perfeito olhando do seu corpo para a sua alma... Oh! Oh! já me não vejo. Sinto-me roseira toda perfumada... o corpo da minha realidade no além é uma roseira, que sinto mas não vejo... Os meus olhos esvaíram-se para a alma... Floriram para dentro as melhores flores do meu ser do além!...
X – Senhor! Senhor! Senhor! Já nem sequer me amas, já nem sequer me amas!
P[RÍNCIPE] – Que paisagem é esta que é uma roseira branca nas noites do além! Que (...) montes! que linha estranha que têm estes montes! Que vales tão aluindo-se.
P[RÍNCIPE] – Qual foi aquela batalha em que eu ia na frente dos meus corcéis, de pluma branca ondeando ao vento.
X – Não houve essa batalha, senhor. Não entraste nunca em combate...
P[RÍNCIPE] – Então por que me recordo tão bem disso? Eu ia indo e, não sei como, via-me longe. Eu era belo como não pode ser. A batalha durou muito tempo em que não se via nada. Ah, então essa foi uma derrota, uma derrota... Pobre de mim, que até os meus exércitos na guerra não podem vencer nem regressar...
P[RÍNCIPE] – É tudo as paredes de um grande poço a que não vejo o fundo... Que fundo, oh que fundo! De que lado é que é o negro? Aonde é por cima e por baixo? onde é que está o lugar onde eu estou? Ah, não sei onde está o espaço... Está tudo errado, tudo vazio de dentro para fora.. Não tenho esquerda nem direita... Nem há lado nem posição.. Ah, o que é isto tudo, o que é isto tudo? Tenho medo (...) Fecha-me na vida... Não me deixes sair da vida... Isto aqui é tão estranho!
P[RÍNCIPE] – O silêncio das cousas faz-me gestos que me apavoram. Onde estão as cousas... Já não há cousas... É tudo negro, tudo negro… Não, Não… … tudo como se fosse negro. São gente… Ah, vede, vede... são figuras que passam... Não há cousas, há gente. Sobem dos abismos como exalações... Já não há cima nem baixo nas cousas.
Tudo é já Diverso — mesmo o modo de se ser diverso.
X – Vede, senhor, vede, estais melhor... Já vedes cousas e antes víeis só sonhos.
P[RÍNCIPE] – Não, não... Passei atrás de Deus para o outro lado da ilusão... (...) Agora ouço-te: és uma figura num sonho... Amo-te com compaixão porque te julgas real... A tua alma e o teu corpo são uma só coisa, mal sabes tu o que eles te encobrem...
X – Acalmai-vos, senhor... Acostai-vos no leito... Tudo isso é sonho... Amanhã estareis melhor.
P[RÍNCIPE] – (numa voz calma e lenta) Ouço um ruído de fonte,.. Que grande noite! Que grande paz cabe no haver esta noite... É outra espécie de noite... É a própria paz... Mas que lugar tão estranho... Todo fresco de tanto abismo... Por onde é que eu vou andando?...
X – Não andais, senhor...
P[RÍNCIPE] – Ouvi um ruído qualquer... Que grande paisagem de abismos... (...) No fundo de um desses abismos deve estar (...) Que calma espera nos contornos invisíveis dos rochedos? Que sossego se abisma nas profundezas!... Já estou esquecido de novo... Para onde vamos nós? Não ouço caminhar... É como se estivesse a dormir enfim... Cada passo é sereno (...), cada passo é calmo como ter já chegado.. . Como estou calmo. Vai raiar a aurora. . .
X – Anoitece, meu senhor, anoitece...
P[RÍNCIPE] – Vede, vede... Os exércitos que eu comandei... os cavaleiros do meu séquito... vencedores ao longe... vencedores ao longe... todos eles sou eu... Vede, vede... chegam ao castelo... Que grande castelo todo do poente! Chegam ao castelo... Ah, o que é isto? Como tudo se alarga! Como tudo se aviva... Ah! o castelo está em chamas, está em chamas! Assim é que ele devia estar... assim... assim... Ondeia em chamas, alastra-se no fumo... é maior ardendo, é mais antigo ardendo... é mais meu ardendo... Cresce tudo, cresce tudo... Que deslumbramento... Há fogo nas eiras... Há fogo nas eiras... Os pinheirais estão em chama... O céu é um mar imenso em marés furiosas de fogo... Tudo transborda lume... Queima-se em mim todo o universo... Arde todo ali fora… no lume cresceu tudo para dentro... Tudo floresceu em chamas...
Vejo de mais... Há cousas a mais no espaço... Há cousas de mais em cada cousa... Há muito em tudo... Está tudo errado, pra mais... Já vai mudar tudo... O fogo é já de outra cor... Ah... tudo é negro... tudo é negro... tudo é negro outra vez... Há ruídos de grandes quedas; há choques de exércitos na noite... Ninguém sabe se vence... Tropéis de cavalos no longe... Onde está o mundo? Onde está o mundo? onde há cousas? onde há cousas? onde há cousas?
X – Meu senhor, meu senhor...
P[RÍNCIPE] – Já não sei nada... (...) Fala-me... Fala-me... Fala-me... De que lado da minha alma é que soa a tua voz?
s.d.
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
 - 222.

1ª publ. in Fernando Pessoa et le Drame Symboliste. Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977

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