sábado, 31 de janeiro de 2015


O CAVALO


« Um cavalo parado; presa a ele uma carroça parada. Na carroça, dois corpos com uma corda ao pescoço e mãos amarradas atrás das costas. Estão mortos.
    Voltamos ao cavalo. Está parado. Aguarda qualquer coisa. Uma ordem, talvez. Mas o cavalo não percebe nada. É muito estúpido.»



Gonçalo M. Tavares. Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 31


«- Eu não estou louco - ainda não, embora tal venha a acontecer-me em breve. Com certeza que me recordo. Continue a olhar-me, pois tenho medo que as minhas palavras se percam. Continue a olhar-me nos olhos e não me interrompa.
      Inclinei-me para a frente e fixei-o em pleno rosto o mais insistentemente que me era possível. Deixou cair uma das mãos sobre a mesa e eu segurei-a pelo pulso. Estava enrugada como uma pata de pássaro e mostrava nas costas uma cicatriz de contornos retalhados, muito vermelha e com o feitio de um ás de ouros.»

Rudyard Kipling. O homem que quis ser Rei. Colecção Contemporâneos de Sempre. Edições Vega. 1993., p. 38

«Salvo o calor e a preocupação, nenhuma razão particular de enervamento existia, e, contudo, agora que os ponteiros do relógio tinham rastejado até às três horas, eu poderia gritar bem alto a minha fadiga.»


Rudyard Kipling. O homem que quis ser Rei. Colecção Contemporâneos de Sempre. Edições Vega. 1993., p. 20/1

algaraviada


nome feminino

1. confusão de vozes que se ouvem em simultâneo
2. linguagem confusa e difícil de perceber

escalavrar

conjugação
verbo transitivo

1. golpear superficialmente; esfolar; arranhar
2. deteriorar o revestimento de (paredes)
3. danificar; arruinar

aves noctívagas

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

«-Não estás lá para ganhar dinheiro, mas para aprender; quando já souberes alguma coisa poderás ser exigente. Por agora és só um aprendiz; talvez amanhã, ou depois, venhas a ser tu o chefe. Mas para isso é preciso ter paciência e, acima de tudo, humildade. Se te põem a passear a criança, fá-lo, pelo amor de Deus. Tens de te resignar.
  - Que se resignem os outros, avó, eu cá não estou para resignações.»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 36/7

 
«No dia em que partiste percebi que não voltaria a ver-te. Ias tingida de vermelho pelo sol da tarde, pelo crepúsculo ensanguentado do céu. Sorrias. Deixavas para trás uma aldeia da qual muitas vezes me disseste: ''Amo-a por tua causa; mas odeio-a por todas as outras coisas, até por ter cá nascido.'' Pensei: ''Jamais regressará; nunca voltará.''


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 36

abutre solitário



“Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco”


 Álvaro de Campos

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


QUADRAS DA ALMA DORIDA
"Trago deus impresso em mim
no coração e nos rins
A mancha tem a altura
de quarenta quadris
Estava num profundo êxtase
no seio da divindade
Tudo se esvai. Perdi o
bilhete de identidade
A vida dói. Nada resta.
E diz a alma dorida:
Não creio numa outra vida.
Havia eu de crer nesta?"
-"Obra Poética 1"
- Ruy Belo

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

INTEGRATION OF SHADOWS




"Montes azuis ao norte das muralhas,
Branco rio serpeando à sua roda;
Aqui o separar nos é forçoso
E prosseguir até mil léguas de erva morta.


Espírito como suspensa nuvem branca,
Ocaso como despedida de conhecidos velhos
Dobrados numa vénia, ao longe, as mãos juntas sobre
o peito.
Nossos cavalos relincham mutuamente
e afastamo-nos."


Ezra Pound. Poemas Escolhidos.
Água exposta a Heavy Metal


A água exposta à música Imagine, de John Lennon


Água exposta à palavra Verdade


Água exposta à expressão "Enojas-me"


Água exposta à palavra Eterno


Água exposta à palavra Mal


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

DE LANÇAR A REDE
"À data do nosso encontro, o oriente estava próximo
e nós crentes de que o tínhamos encontrado.
Lançámos a rede.
Demo-nos conta de que qualquer arte chega
de assalto; as ondas, vendo bem, desenham
o seu precipício. Assim fazemos, desta feita
enrolando os dedos nos cabelos, os olhos
um pouco amachucados (temendo não conseguir ver
outro oriente). E toda a geografia, deste modo,
se vai resumindo ao medo."


- Marta Chaves -
-"Telhados de Vidro Nº 16"
AFABULAÇÃO #2
"Eu vivo ingenuamente a minha tragédia à medida que ela se vai desenrolando.
E vou inventando o sentido das suas situações."



-"Afabulação"
- Pier Paolo Pasolini 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

JASÃO


"Pergunto muitas vezes a mim próprio se o prazer de destruir outras vidas não virá de não termos prazer nem alegria com a nossa própria vida."
-"Medeia : Vozes"
Christa Wolf

MITOLOGIA ERÓTICA E AMOROSA


"Uma mulher é tanto mais doce não quanto mais bela, mas quanto mais vegetal, mais feminina for."
"Encontrar reciprocamente um no outro o universo é algo que faz necessariamente parte do amor - mas não definido assim de forma tão seca / É um mar doce de silenciosa afinidade,"


- Friedrich Schegel -
-"Telhados de Vidro Nº 19"

LADY OF THE LOWLANDS
"Não cairei. Alcancei o centro. Escuto a pulsação de não sei que divino relógio através do fino invólucro carnal da vida plena de carne, de sobressaltos e de suspiros. Estou perto do núcleo misterioso das coisas como, à noite, estamos às vezes perto de um coração."


Marguerite Yourcenar
"Fogos" 
Vamos fazer limpeza, mas geral
e vamos deitar fora as coisas todas
que não nos servem para nada, essas
coisas que não usamos já e essas
que nada fazem mais que apanhar pó,
as que evitamos encontrar porquanto
nos trazem as lembranças mais amargas,
as que nos fazem mal, enchem espaço
ou não quisemos nunca ter por perto.
vamos fazer limpeza, mas geral,
talvez melhor ainda uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos,
que fiquem onde sempre têm estado;
vamos embora só nós, vida minha,
para voltar a acumular de novo.
Ou vamos deitar fogo ao que nos cerca
e ficarmos em paz com essa imagem
do braseiro do mundo face aos olhos
e com o coração desabitado.

Amalia Bautista
HÃO-DE DIZER
Da minha cidade o pior que os homens hão-de dizer é o seguinte:
Afastaste as criancinhas do sol e do orvalho,
E dos reflexos que sob o vasto céu se insinuavam na erva,
E da chuva temerária; puseste-as entre paredes
A trabalhar, abatidas e asfixiadas, em troca de pão e salários,
A comer pó pela garganta e a morrer de coração vazio
Por uns trocos de ordenado nalgumas, poucas, noites de sábado.


Carl Sandburg
(tradução de Vasco Gato)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

"Les amants réguliers"



«Os homens fizeram as suas abluções com a água do poço e rezaram em silêncio.»


Tahar Ben JellounDe olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 264

«Como diz o filósofo, é preciso que o coração se desfaça ou se torne de bronze.»


Tahar Ben JellounDe olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 263

«Nenhum clarão apareceu para apaziguar uma consciência perturbada. Nenhuma mão veio poisar no meu ombro. Torno a partir mudada. A descoberta das raízes é uma prova difícil. Como teria podido suspeitar a sua gravidade? Já não sou uma criança maravilhada com a vida. Tenho a certeza que o meu homem partiu. Ele tinha-me prevenido. Eu não acreditava. Encorajara-me a fazer aquela peregrinação. Devia saber que esse choque ia fazer-me reflectir melhor do que todos os discursos que ele me fazia. Descobri o fracasso, e as minhas lágrimas não servem de nada.»


Tahar Ben JellounDe olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 261

teoria do desenraizamento

EM BUSCA
"Nenhum jardim, nenhum olhar os prende.
Intactos nas paisagens onde chegam
Só encontram o longe que se afasta,
As aves estrangeiras que os trespassam,
E o seu corpo é só um nó de frio
Em busca de mais mar e mais vazio."

 Sophia de Mello Breyner Andresen. Obra poética 1.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O último dia

Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o
mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Este vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.
Como morre um homem? Estranho ninguém refletiu
nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém se
resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram
órfãos.
Uma casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»




Yorgos Seferis, "Poemas escolhidos" (de Diário de Bordo I
tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis 
© Relógio d'água 


«Saio de um sonho para entrar num pesadelo,
como quem entra numa porta errada
e sente que devia arrepiar caminho
e que as forças lhe faltam
e lhe falta a coragem
ou apenas a vontade de acordar.
O que eu queria era sumir-me,
desaparecer de vez,
mas sem fazer o que o João Carlos fez.
Deixar-me simplesmente adormecer
e acordar do outro lado.»


Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 171

«Ele repousa, o morto, um
de tantos que nós,
que respiramos,
carregamos
sem disso darmos conta,
ele repousa
em qualquer cama
de qualquer quarto
desta ou de qualquer casa,
ele repousa
longo e frio,
só e frio,
grave e fino
como todos aqueles que,
tranquilos,
dos nossos olhares se retiraram
e de nós,
cautelosos,
se resguardam.

Ele repousa, o morto,
sob o selo de cera
da sua face morta,
talvez no mesmo leito
em que comigo me deito e,
sem conseguir dormir,
converso de mim para mim
nos meus lençóis de linho,
mortalhas
entre as quais
os amantes se abraçam,

(...)»



Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 168

(...)

«Ele repousa, o morto, ensanguentado,
tendo à direita da vista
a bala e o seu buraco
e a arma ainda quente
fumegando pólvora preta.»


Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 167

''nuvem sombreada''

ladainha

''sete punhais de prata espetados no coração''



(Relâmpagos violentos, trovões de fazer tremer as paredes)


e um relâmpago rachou a velha pedra
entre a estátua e a sua espada,
entrando pela pedra dentro,
arrastando-me com ele
para a longínqua loucura
dum profundo amor nocturno,
para o sonho onde entrei
naquela única vez
e do qual não regressei
nem sei se regressarei.


Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 137

«Para mal dos meus pecados,
sou daquelas que sofrem
de cada vez que tocam 
ou lhes tocam
nas chagas do passado.
Quem como eu
sofreu tanto em pequena,
tarde ou nunca se endireita.
Mas enquanto aqui estiver
sou obrigada a disfarçar,
a fingir que não é nada comigo,
a não dar parte de fraca.»



Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 125

«Será que só desejo o meu desejo
ou o desejo de qualquer mulher?»



Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 119
MOISÉS (sem lhe ligar)

Nem brinque com a rapariga,
não a desencaminhe, que ela
coitada já sofreu na vida.


Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 118

“This is the end 
Beautiful friend 
This is the end 
My only friend, the end.” 

- The Doors, "The End"
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