quarta-feira, 3 de julho de 2013

As ondas de escuridão

   O sol descera finalmente no horizonte, e era agora impossível distinguir o céu do mar. Ao desfazerem-se, as ondas espalhavam na praia os seus grandes leques, enviavam sombras brancas para as profundezas das cavernas e refluíam suspirando sobre os seixos.
   A árvore sacudiu os ramos espargindo folhas pelo chão. As folhas pousaram com perfeito rigor no local onde vão esperar a sua decomposição. O vaso quebrado, que antes contivera a luz vermelha, derramava agora no jardim tons cinzentos e negros. Escuras sombras enegreciam ainda mais os túneis abertos entre os caules das plantas. O tordo estava agora silencioso e o verme encolhido no seu pequeno buraco. Às vezes, uma palha esbranquiçada, arrancada a algum ninho abandonado, caía na erva escura onde as maçãs apodreciam. A luz desaparecera da casa das ferramentas e a pele de víbora pendia de um prego. Todas as cores do quarto tinham transbordado os seus limites. As pinceladas do artista tinham-se tornado demasiado cheias e oblíquas: os armários e as cadeiras misturavam as massas castanhas numa vasta obscuridade. Do soalho ao tecto, pendiam grandes cortinados de trémula escuridão. O espelho estava pálido como a entrada de uma caverna sombreada por trepadeiras.
    As sólidas colinas pareciam ter perdido substância. Luzes errantes arrastavam os seus penachos por invisíveis estradas submersas. Mas nem uma só luz surgia por entre as asas dobradas das colinas e nenhum som se ouvia além do grito do pássaro procurando uma árvore solitária. Na borda da falésia, o murmúrio do vento que atravessara as florestas encontrava-se com o da água arrefecida nas inumeráveis e vítreas profundidades do oceano.
     Como se existissem ondas de escuridão, a noite avançava cobrindo as casas, as colinas e as árvores, como as ondas do mar varrem os flancos de um navio naufragado. A escuridão cobria as ruas, rodeava os seres isolados e submergia-os. Envolvia também os amantes abraçados à sombra da folhagem densa dos olmos de Verão. As ondas de escuridão avançavam pelos caminhos cobertos de erva e pela terra ressequida, envolvendo o espinheiro solitário e as casas vazias dos caracóis. Depois a escuridão subiu, soprando pelos flancos nus das colinas e atingindo os eruditos cumes das montanhas onde a neve se aloja na dura rocha, mesmo quando os vales estão repletos de arroios e de folhas amarelas das videiras e as raparigas sentadas nas varandas olham a neve protegendo o rosto com leques. Depois a escuridão cobriu também as raparigas.



Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.189/190
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