domingo, 4 de novembro de 2012

Gazela da morte sombria


Quero dormir como dormem as maçãs,
fugir do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir como dorme aquele moço
que queria cortar o coração no alto mar.

Não quero que me repitam que os mortos não per-
        dem o sangue,
que a boca apodrecida continua a pedir água.
Não quero conhecer os suplícios que nos vêm da
         erva
nem da lua com boca de serpente
que trabalha antes do amanhecer.

Quero dormir um pouco,
um pouco, um minuto, um século;
mas que todos saibam que não estou morto;
que há um estábulo de oiro nos meus lábios;
que sou o pequeno amigo do vento oeste;
que sou a imensa sombra das minhas lágrimas.

Cobre-me com um véu pela manhã,
porque me atirará punhados de formigas,
e molha com água dura os meus sapatos
para que neles resvale a pinça do lacrau.

Porque quero dormir como dormem as maçãs
para aprender um pranto que me limpe da terra;
porque quero viver como aquele moço sombrio
que queria cortar o coração no alto mar.



Frederico García Lorca. Antologia Poética. Selecção de Eugénio de Andrade com um estudo de Andrée Crabbé Rocha e um poema de Miguel Torga. Coimbra Editora, 1946., pp.139-141
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